Cadê a igualdade que estava aqui? O gato comeu!


É essencial que adultos e educadores compreendam que a criança está sempre em desenvolvimento, e qualquer questão relacionada à igualdade, inclusão ou mesmo preconceito será apreendida positiva ou negativamente

O entendimento de igualdade é seguidamente mencionado em aulas e também fora da escola, seja nas matérias de jornais ou em propagandas políticas. Contudo, muitas crianças e pré-adolescentes podem não entender o verdadeiro significado dessa palavra, por não saberem a forma pela qual ela pode se fazer presente em suas ações do cotidiano.

Assim, compete à escola e à família oferecerem instrumentos acadêmicos e cotidianos para que os alunos possam entender mais claramente a forma como a igualdade move a vida de todos nós. Para isso, é essencial promover atividades apropriadas às idades dos alunos, de maneira que eles compreendam melhor como ela pode ser vivenciada diariamente.

A Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade Cristiane Guedes ressalta o fato de ser muito importante que o adulto ressignifique o objetivo da palavra “Igualdade” para que possamos abordar com os pequenos, para que sua participação seja efetiva na sociedade. “Ressignificar para dar um sentido efetivo à igualdade. Etimologicamente, a palavra tem origem do latim equalitas, que quer dizer “aquilo que é igual”, “semelhante”, relação entre coisas iguais. Portanto, a atitude que precisamos ter com nossos semelhantes. Igualdade está relacionada aos direitos e deveres que devemos cumprir em sociedade, bem como nas políticas públicas, sejam elas educacionais, de saúde e até nas oportunidades”, explica.

 

Mas, afinal, como levar para as crianças um conceito complexo como a igualdade?

Num mundo em que as crianças e adolescentes acreditam achar tudo que precisam na tela de um computador e interagem cada vez menos com os pais e professores, respeitar as diferenças é muito importante para que tenhamos uma sociedade mais igualitária. Ainda mais em sala de aula, onde existe uma diversidade significativa, que está relacionada, de acordo com a mestre em Psicanálise, à condição de cada família, seus credos, convicções e relações. “Cada indivíduo em uma sociedade participa de acordo com suas crenças, aquilo que se perpetua de cada família. O que deve ser constatado em sociedade são as individualidades pertinentes a cada ‘constelação familiar’. Quando tratamos de igualdade, devemos tratar das diferenças ideológicas com o devido respeito, pois delas se constitui a sociedade. Trata-se de uma questão qualificada, que permeia a problemática da individualidade. Portanto, é fundamental que seja trabalhada em sala de aula, valorizando a ética nas relações”, garante Cristiane.

A especialista relata que o trato do tema deva ser referido à igualdade social. Segundo ela, todos têm os mesmos direitos com particularidades apenas nas escolhas que realizamos, sejam elas de âmbito religioso, gênero ou crença. “Formamos uma sociedade e os direitos deveriam ser os mesmos para todos. A relevância do tema, a meu ver, deve ser tratada com naturalidade. Valorizando a diversidade, as escolhas e principalmente aprendendo a ouvir, pois das diferenças é que nasce a igualdade. Tudo está na possibilidade de eu acolher o outro, sem reservas. A criança aprende, segundo Piaget, através da ação sobre o objeto, onde estabelece relações e impressões sobre aquilo que deseja. A ação pedagógica mais efetiva para o trato com a criança é através das relações com o outro, ou seja, o jogo. Eles aprendem à medida que interagem estabelecendo, assim, valores para a interação social”, afirma.

De acordo com Cristiane, a criança não nasce com valores sociais estabelecidos. A partir dos primeiros instantes de vida, ela deve ser cuidada em suas necessidades básicas. É também nesse momento que se inicia a aprendizagem sensorial e assim sucessivamente. “Nesse processo de desenvolvimento, vai se estabelecendo, através da interação com quem cuida, a relação com os valores sociais. Estes estão recheados de crenças que são disparadoras na relação de alteridade. É a partir dessas crenças que vão ser caracterizados os padrões entre os sujeitos envolvidos.

O adulto é, para a criança, um modelo de aprendizagem, que será repetido até que ela, através de suas relações pessoais em sociedade, consiga discernir entre o que está certo e o que está errado em determinadas condutas.

A mestre em Psicanálise ressalta a importância de adultos e educadores que compreendam o fato de a criança estar sempre em desenvolvimento. Segundo ela, qualquer questão que esteja relacionada à igualdade, inclusão ou mesmo preconceito será assimilada, positiva ou negativamente. Tudo o que inviabiliza o seu contato com o outro é inevitavelmente aprendido. “É importante entendermos que as temáticas envolvendo essas questões estão diretamente relacionadas à predisposição do adulto em interagir socialmente. Essa condição está ligada às crenças existentes em determinada configuração da sociedade. Igualdade se define por direitos iguais de interação social e não é algo que deveria estar relegado às questões de gênero ou raciais. Trata-se de um conceito que diz respeito à inexistência de desvios ou incongruências sob determinado ponto de vista entre elementos comparados”, esclarece Cristiane.

 

Cristiane Guedes é Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade – UVA. Especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Ceperj. Atividade: Clínica Psicopedagógica e experiência em Supervisão e Orientação Educacional. Especialização em Dificuldade de Aprendizagem: Prevenção e Reeducação Uerj. Especialista em Orientação Profissional / Vocacional – Instituto SER. Graduada com Licenciatura em Educação Artística pelo Instituto Metodista Bennett. Professora de Pós-graduação em Psicopedagogia Clínica e Institucional. Coordenadora do curso de Pós-graduação em Psicopedagogia Clínica e Institucional. Palestrante para pais e educadores. Contato: criguedes@hotmail.com | Currículo Lattes

 

Máquina de Raio X da igualdade

Sabendo da importância de trabalhar o tema em sala de aula, a professora Marina Gomes Bittencourt, da Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) Nelson Mandela, localizada em Limão, bairro da Zona Norte de São Paulo, desenvolveu o projeto a Máquina de Raio X da Igualdade. A iniciativa surgiu com o intuito de mostrar às crianças, a partir de um exemplo concreto, como todos os seres humanos são iguais e por isso têm direitos e valores.

Segundo a educadora, o objetivo é falar sobre a vida do patrono da instituição, o líder sul-africano Nelson Mandela. “A partir da leitura do livro ‘Madiba, o menino africano’, algumas perguntas surgiram: ‘Por que Madiba lutava por liberdade e igualdade, professora?’, ‘O que é lutar por igualdade e liberdade?’. Percebi então que esse seria o disparador que me levaria à apresentação da história de vida de Nelson Mandela. Mas, para que isso acontecesse, seria preciso que as crianças entendessem o significado dessas duas palavras: igualdade e liberdade”, afirma Marina.

A educadora conta que começou a conversa com os pequenos, que têm entre quatro e seis anos, pela definição de “igualdade” no dicionário. E depois disso, teve a ideia de mostrar o esqueleto humano. “Como é que podemos ver nosso esqueleto? Fazendo um raio X! E assim direcionei para a ideia de igualdade”, explica.

Para colocar a atividade em prática, a professora resolveu usar o poder imaginativo das crianças através de uma abordagem já conhecida pelos alunos da escola: a Família Abayomi. “São bonecos de pano em tamanho real, que passaram a integrar a família escolar. O Azizi Abayomi, por exemplo, é um príncipe negro africano que vem ao Brasil e se casa com Sofia. Da união nasce Dayó e Henrique. Trata-se de uma espécie de “mito criador” do debate racial com as crianças na escola. Como existe afeto em torno dos bonecos e das bonecas, cada passo da família (casamento, nascimento dos bebês, férias etc.) abre espaço para atividades lúdicas e para debates sobre racismo, inclusão, resgate da ancestralidade, entre outros temas que incentivam o respeito às diferenças”, explica a educadora. A partir daí a brincadeira foi enviar para os alunos a seguinte carta:

“Olá, turma Marte (cada turma da escola tem o nome de um planeta)! Ontem eu vi que vocês fizeram uma atividade muito legal. Vocês procuraram e acharam vários significados para as palavras Liberdade e Igualdade! Nossa, mas eu achei um pouco complicado entender essas duas palavrinhas, e vocês? Bom, resolvi ajudar e trouxe essa máquina, ela se chama Raio X da Igualdade, a professora de vocês vai ensiná-los a usar. Aproveitem!” – Sofia Abayomi.

 

A educadora explica que o objeto funciona de forma lúdica: os pequenos passam a máquina no corpo do “examinado” e ao final retiram a “chapa” mostrando que por dentro todos são iguais. “Após essa atividade as crianças começaram a perceber que ser diferente por fora é legal e importante. Passaram a respeitar as diferenças entre eles, como a cor da pele, tamanho, cabelo”, conta Marina.

A escola também passou a falar sobre a importância da igualdade. “Negros e brancos devem ter os mesmos direitos, essa era a luta de Nelson Mandela. O objetivo é que as crianças participassem de ações afirmativas que valorizem sua identidade étnica”, garante a docente.

Marina perguntou para os pequenos como poderiam ensinar as demais pessoas a respeitar as diferenças. E eles responderam: “Podemos ir para rua e mostrar tudo que aprendemos”. Foi a partir dessa ideia que a escola realizou uma passeata contra o racismo e o preconceito. “O mais importante de projetos como esse é a possibilidade de formar cidadãos que respeitem o próximo, entendam as diferenças entre as pessoas, compreendam que são elas que compõem a nossa vida em sociedade. É dada às crianças a oportunidade de construir uma imagem positiva de si mesmas participando de ações afirmativas sobre suas identidades étnicas, e que elas levem essa aprendizagem consigo para a vida toda, repassando às demais pessoas que façam parte do seu convívio”, garante.

 

Meninos x meninas? Conheça maneiras de unificar o grupo e promover igualdade de gênero

A Educação Física, por exemplo, talvez seja ainda uma das disciplinas mais tachadas pelos estereótipos e desigualdades de gênero. Isto porque, historicamente, esteve fundamentada na separação entre os sexos para a prática dos diversos jogos, esportes e brincadeiras que a integram. Enquanto algumas atividades eram destinadas apenas aos homens, como o futebol e o basquete, outras ficavam determinadas à participação feminina, a exemplo da dança.

Essa visão separatista era sustentada dentro da noção cultural de que práticas esportivas eram associadas ao universo masculino. “Vencer desafios, superar limites, enfrentar oponentes, dor e esforço eram ações tidas como experiências restritas aos homens, relegando às mulheres itens como leveza, fluidez, graça e sensibilidade”, explica Marcos Neira, professor da Faculdade de Educação da USP e coordenador do Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar.

O educador ainda diz que não há outra explicação para a segregação. “Essa visão comumente circula amparada em falsas teorias biológicas ou psicológicas. A mulher não é ‘geneticamente’ frágil, assim como o homem não é ‘geneticamente’ forte”, justifica. Nesta concepção, não só os esportes, mas diversas brincadeiras e quase todas as lutas, foram constituídos como territórios de expressão e imposição de uma certa masculinidade, restringindo o espaço em relação à participação das mulheres.

De acordo com as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), não existe indicação de separação. Já os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) sugerem aulas mistas, tidas como uma oportunidade para que os alunos convivam, compreendam e respeitem suas diferenças. “Essas situações trazem efeitos educacionais perversos, pois vão ensinando a meninos e meninas concepções distorcidas sobre eles próprios e os lugares que podem ocupar no cenário social”, enfatiza Marcos Neira.

Atualmente, essa situação vem se modificando por ser possível aplicar ações inclusivas. Porém, a velocidade e a abrangência em que tudo isso acontece ainda não são satisfatórias. É possível observar, por exemplo, que são poucos pais que apoiam a prática das meninas no boxe, caratê ou mesmo nos videogames que retratam situações de combate. Por outro lado, meninos que praticam atividades como balé ficam na mira do preconceito.

A ideia de uma aula igualitária deve sensibilizar para o fato de que, em pleno século XXI, meninos e meninas ainda são tratados de forma desigual, e também promover a reflexão sobre os desafios que se materializam a partir de uma perspectiva democrática.

 

Como o educador pode favorecer práticas igualitárias na Educação Física? Marcos Neira responde:

• Diversifique o repertório!

Para aulas mais inclusivas, o professor também deve ter em mente que é necessário selecionar experiências pedagógicas adequadas e diversificadas para o tratamento das práticas corporais. Além disso, insistir em situações didáticas que apenas exponham a dificuldade das crianças ou jovens só reforça as diferenças em sala de aula. É importante tematizar brincadeiras, danças, esportes, ginásticas e lutas realizadas por distintos grupos sociais – de gênero, religião, etnia ou classe.

• Aponte e debata as condutas segregacionistas!

É fundamental que os discursos que estigmatizam as pessoas sejam problematizados e as condutas segregacionistas, combatidas. Se os meninos não estão passando a bola para as meninas, a atividade precisa ser interrompida e as razões dessa postura têm que ser transformadas em objeto de análise e crítica. Da mesma forma, se os meninos se recusam a participar das danças ou da ginástica rítmica, esse comportamento deve ser debatido e questionado. O pior que pode acontecer é a escola ausentar-se dessa responsabilidade. A desconstrução dos discursos pejorativos ou das posturas preconceituosas só acontecerá se outros conhecimentos forem agregados às experiências pedagógicas para além das vivências corporais.

 

• Apresente outras realidades!

Meninos e meninas precisam saber que a ocorrência social das práticas corporais nem sempre foi da maneira como hoje conhecemos, nem tampouco acontece da mesma forma em todos os lugares. Há países em que o futebol é uma prática bastante comum entre as mulheres. O balé já foi uma dança exclusivamente masculina e, em alguns povos, existem lutas praticadas igualmente por mulheres e homens.


Por Jéssica Almeida e Richard Günter

Fontes: Cidade Escola Aprendiz, Centro de Referências em Educação Integral, Portal Lunetas (lunetas.com.br).


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