Salve o compositor popular


Bezerra da Silva, Moreira da Silva e Dicró, “os três tenores da música brasileira”

Carlinhos Brown situou o nascimento da nossa música mais original para além das terras brasileiras: para o músico baiano, o samba teria nascido nos navios negreiros, no compasso do balanço das águas, embalando a dor dos desterrados da África.

De alguma forma dialogando com a tese de Brown, Vinícius e Baden afirmaram que “o samba é a tristeza que balança”. E é na própria letra do “Samba da Bênção” que vem outra ideia sobre a origem do samba: “o samba nasceu lá na Bahia”, dizem os dois compositores.

Agora quem pode ser evocado pra continuar o diálogo é o antropólogo baiano Antonio Risério, que poeticamente descreve a Bahia como aquela velha negra, patriarca da cultura africana a comandar o samba de roda, enquanto o Rio de Janeiro aparece como a “moleca” que lindamente dança ao som do sempre irresistível ritmo. Uma ligação entre as duas cidades mais africanas do Brasil, que também apareceria numa genial frase em letra de outro grande compositor, agora Aldir Blanc: “O céu abraça a terra, desagua o rio na baía”.

Mas, explicações poéticas à parte, o fato é que uma grande tradição de compositores se fortalece inicialmente no Rio de Janeiro, à sombra do contato entre a cultura europeia e aquela da imensa quantidade de cativos que habitava a então capital do país. Das esquinas do centro da cidade sairia o choro, praticado inicialmente por músicos virtuoses, de excelente formação, como o flautista e compositor Joaquim Calado, que executaria suas polcas e valsas, sem a menor preocupação de que esses estilos em voga na Europa do século XIX fossem complementados pelos toques dos batuques, cateretês e lundus, que circulavam na atmosfera carioca.

Assim nascia o choro, celeiro de grandes compositores que entrariam para a história brasileira e também, por que não, universal, como Pixinguinha, Ernesto Nazaré e Anacleto de Medeiros. A criatividade brasileira vai definitivamente se ligando a uma cultura de exclusão, sem perder o tom sempre irreverente e jamais abrindo mão da alegria, mesmo quando traz como tema a dura vida dos pobres do Brasil.

João da Baiana, um dos nomes históricos da música popular, compositor, instrumentista e passista, afirmava, era a grande presença de figuras das classes médias e altas que subiam os morros para acompanhar as rodas de samba, batuques, choros, fados, regadas a muita dança, boa comida e amores, como as que ocorriam na casa da lendária baiana Tia Ciata. Um celeiro de grandes compositores, que levariam a música brasileira à condição de uma das maiores riquezas culturais do planeta, deixando geniais sucessores em gente como João Gilberto, Chico Buarque, João Bosco.

Mesmo fora do âmbito do samba, o Brasil sempre produziu grandes compositores, desde um Silas de Oliveira, um mestre na arte de compor sobre as coisas e os valores nacionais, como se pode ver na ode nacional “Aquarela brasileira”, até um Ary Barroso e sua “Aquarela do Brasil”, seu “Rancho Fundo”, seu “Isso aqui o que é”.

O grande compositor baiano Dorival Caymmi.

A música brasileira também ultrapassou as fronteiras da música popular e passou a figurar em obras de compositores eruditos como Guerra-Peixe e Radamés Gnattali. Esteve também na concepção de uma música brasileira sem fronteiras entre clássico e popular, como propunha Heitor Villa-Lobos, que aliás costumava na infância pular o muro de sua casa, no subúrbio do Rio de Janeiro, para ouvir a música que os chorões praticavam em suas rodas noite a dentro.

E o que dizer da música do nordeste brasileiro, com sua explosão de criatividade em nomes como João do Vale, Jackson do Pandeiro, Elomar e, claro, o grande rei Luiz Gonzaga. Uma criação que talvez seja a maior expressão da brasilidade ao abordar a vida sofrida do Brasil profundo, mas de uma maneira tão repleta de alegria, vitalidade e otimismo.

Os nossos grandes mestres da composição foram analisados e ficaram eternizados pela pena de historiadores da música brasileira como José Ramos Tinhorão ou Mario de Andrade, ou de pensadores da cultura e da história do Brasil, como um Roberto Porto, um Haroldo Costa ou um Hermano Vianna.

A música de raiz brasileira transformou-se na trilha sonora de todos os nossos grandes momentos. Evocada em momentos de efervescência política, nas mesas de bar, nas casas de família. Sempre revestida de um “sentimento renovador”, na ótica de dois de nossos maiores gênios. Assim, é dia de relembrar e louvar a riqueza cultural brasileira revelada pela genialidade de nossos grandes compositores.

Leia também: “A ilha Brasil e o passado árabe na formação da alma portuguesa”, em https://bit.ly/2NAXXjB


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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