Pensando sobre livros

Dia Nacional da Leitura é marcado pela conquista do prêmio Camões com a obra de Chico Buarque.

Este mês se comemora o Dia Nacional da Leitura, e num importante momento em que o Brasil é agraciado com o prêmio Camões para a obra literária de Francisco Buarque de Holanda. Se podemos e devemos comemorar o feito, por outro lado não devemos deixar de lado a realidade da leitura em nosso país, que apresenta índices muito pequenos em termos de novos leitores, apesar da grande oferta de obras – como acabamos de ver pela Bienal Internacional do Livro do Rio – e até do aumento no faturamento com esse produto em termos gerais. Cabe, assim, uma reflexão sobre o modo como no passado se encaravam os livros em contraste com o que temos hoje.

Em 1559 a Igreja Católica instituiu o “Index Librorum Prohibitorum”, que ficaria conhecido como Index, a lista de obras que as autoridades eclesiásticas consideravam impróprias ou contrárias à fé cristã. O documento teve 32 edições, que foram reeditadas ao longo de quase quatro séculos, com a sua última relação publicada em 1948. Oficialmente perduraria até 1966 e teria entre seus censurados nomes consagrados da arte e do conhecimento, como Descartes, Espinosa e Balzac.

Mas mesmo em tempos em que supostamente a liberdade de expressão é reconhecida como um valor universal, tendo como mote mais atual o conhecimento sem peias veiculado pela internet, talvez esteja sendo construído, ainda que de forma sutil, o que poderia ser visto como uma variante do Index ou como um Index do século XXI.

Uma edição do romance Quincas Borba, de Machado de Assis, lançado pela editora Garnier no início do século XX traz ao final um glossário de aproximadamente 50 páginas. Esse apêndice era destinado a permitir que os leitores aproveitassem melhor as inúmeras referências espalhadas pelo texto. Um acervo que abrangia citações de clássicos da literatura universal, personagens do teatro greco-romano, passagens de escrituras das mais antigas tradições religiosas, trechos em outros idiomas, tratados de filosofia e episódios de história geral, enfim uma lista que talvez abranja algo em torno de 7 milênios da cultura das civilizações humanas.

Um procedimento literário comum em vários outros autores da literatura universal do século XIX. Tais procedimentos, no momento das opções estéticas por esses escritores, naturalmente encontravam respaldo na expectativa dos leitores, dispostos a serem convidados ao domínio de referências culturais muito além de seu tempo e espaço. Isso sem falar no próprio perfil intelectual dessas figuras produtoras de literatura.

Fica patente a diferença de formação em gente como o próprio Machado de Assis, mas também outros, como um Lima Barreto ou um José de Alencar, em cujas obras se acha uma infinidade de conhecimentos e saberes, que são empregados paralelamente à temática aparentemente “principal” de suas obras. Uma verdadeira lavada quando comparamos com muitos autores campeoníssimos de venda e de prestígio cultural e midiático de hoje, que são teoricamente seus sucessores no papel social e cultural de produzir literatura.

Além dessa variante de censura a tantos conhecimentos anteriores produzidos pela humanidade, com o “sumiço” dessas referências dos textos contemporâneos, há ainda um outro fator de agravamento dessa lacuna, que é a sua apreciação pelos canais atuais de disseminação do conhecimento, principalmente aqueles que se apresentam na grande oferta de conteúdo presente nos meios de comunicação.

Os consumidores dessas informações tendem a se sentir preenchidos do que “precisam saber” e raramente vão sentir falta de uma abordagem aberta e proponente como a que seria veiculada pela própria natureza da linguagem poética, literária ou filosófica, que constitui o ofício do escritor. Pior, devidamente abastecidos, renunciam a ser eles próprios os produtores de conhecimento e saber, porque não se sentem necessitados de buscar, por exemplo, o contato direto com as obras fundamentais das grandes culturas e religiões da humanidade.

Diante desses fatos, cabem algumas perguntas referentes ao que hoje se entende como produção literária. Dá pra imaginar propostas semelhantes em autores contemporâneos? Se acaso houvesse opções estéticas nesse sentido elas seriam bem recebidas pelos leitores? A formação atual do público leitor permitiria que ele embarcasse em tais propostas literárias? A resposta, única obviamente, para essas questões tomos sabemos.

Numa visão do conhecimento como a que temos hoje, não há espaço para explorar com profundidade o acervo das criações humanas. Milênios de experiência das civilizações deixam assim de estar disponíveis para a grande maioria das pessoas. Um consumidor do conhecimento propagado pelos atuais meios de difusão, há menos que tenha tido uma formação ímpar para os padrões atuais ou no caso de pertencer a uma área específica de saber, jamais terá acesso, de forma crítica, à maior parte do que o intelecto humano produziu.

Por que mudanças as nesse sentido? De onde partem os critérios que determinam o que serve ou não serve como conhecimento? Quem decretou que as referências utilizadas fartamente pelos autores até a pós-modernidade passaram a ser desnecessárias e portanto podem desaparecer da produção intelectual e consequentemente da formação educacional?

Sobretudo quando percebemos que os mesmos tempos que teoricamente estão permitindo a difusão do conhecimento em grande escala têm tido que conviver com o retorno de incríveis manifestações de retrocesso, como o recrudescimento de visões como racismo, sexismo, intolerância religiosa, destruição ambiental, ameaças de guerras mundiais e aumento de violência, que pouco nos têm deixado diferentes daqueles que até há bem pouco utilizávamos como modelo de ignorância e bestialidade (dos quais queríamos distância): o homem das “trevas medievais”.

Que a reflexão sirva para que nós, professores, naquilo que está ao nosso alcance, busquemos mostrar aos nossos alunos o vasto mundo que os livros de todos os tempos ainda têm a oferecer. Afinal, os grandes clássicos e autores não deixam de estar presentes, de uma forma ou de outra, em cada pessoa que começa a pensar em conceber um livro.

Leia também: “O que é o que pode no mundo de hoje uma língua como a portuguesa?”

 


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