Pais e filhos


Frases como “Homem não chora”, dirigida aos meninos, ou “minhas cabras eu prendo”, usada pra justificar as rédeas curtas para as filhas, são comumente associadas ao pai, em contraste com a mãe, de quem normalmente se espera ações mais compreensivas ou até aquele famoso “passar a mão na cabeça”. Não dá pra negar que de um modo geral recai sobre o bravo progenitor uma certa “antipatia”, algo como ser aquele que tem que fazer o trabalho sujo, que no final das contas é fundamental para a harmonia familiar. Mas essa visão mais distante e carrancuda que sobra para os pais no nosso círculo familiar não é casual, e na verdade tem raízes mais profundas do que podemos imaginar nas origens da nossa cultura.

Uma delas está em um dos campos do conhecimento mais importantes da mentalidade ocidental, a psicanálise. Freud traça um interessante esquema para explicar a íntima ligação que há entre a mãe e a prole nos primeiros anos de vida. Ele interpreta como o sentido exacerbado de proteção materna, que quer a todo custo garantir a segurança de seus rebentos, mantendo-os assim cada vez mais próximos da vida original no seio materno. Os filhos, por sua vez, anseiam pela segurança que o útero da mãe sempre representou, e no fundo sustentam a esperança de retornarem para lá.

Quem rompe esse esquema de cumplicidade é o pai. Segundo desenvolve Freud, ele quer possuir a mãe e se vê constrangido pela intensa presença da prole ao lado dela. Acaba dessa forma agindo de maneira intempestiva e exigindo seus “direitos” perante sua mulher. O resultado dessa brusca separação é que os filhos começam a romper os laços até então rígidos com a mãe e precisam cair no mundo, viver suas experiências de uma forma cada vez mais independente. A consequência de todo esse processo é a formação do ser e da personalidade, que se constrói em contato com o mundo social.

Durante esse percurso, o indivíduo vai recorrendo ao pai, porque reconhece nele os atributos necessários para orientar e encaminhar ao longo da vida social. Em outras palavras, o pai, na formação das pessoas, é uma espécie de mal necessário, que destrói a relação paradisíaca que se forma com a mãe, mas em compensação abre uma série de experiências fundamentais e inevitáveis e que justificam a existência, a vida e as finalidades do ser humano. E o fato é que essa marca original, de alguma forma agressiva e violenta, fica, na maioria das relações, quase que totalmente inseparável da figura paterna.

Uma outra referência nada simpática para os pais em nossa cultura vem da própria história da formação familiar desde a Antiguidade. Na família romana havia a figura do paterfamilias, que poderíamos classificar como uma espécie de “pai com superpoderes”. Primeiro porque não havia na sociedade romana nada que se parecesse com a nossa “indissolubilidade” do casamento, que era por isso uma instituição tênue e um tanto imprevisível. O que acabava sustentando a continuidade das relações conjugais era o poder irrestrito que o paterfamilias tinha sobre a prole.

Ele podia desde determinar que o recém-nascido continuasse vivo (não era raro que se sacrificassem crianças que tinham acabado de sair do útero materno apenas por desconfiança de não ser o pai biológico ou simplesmente por não gostar do que viu) até decidir sobre questões profissionais ou pessoais dos filhos até quando já tinham chegado na vida adulta. Não apenas os filhos, mas também a esposa, a terra, os escravos, os animais, enfim, tudo o que era de “propriedade” do paterfamilias.

Com um quadro desses, parece natural que a figura do chefe de família romano despertasse, antes de qualquer outro sentimento positivo, medo e temor. O paterfamilias foi ganhando versões um pouco mais brandas ao longo do mundo cristão, mas nada que limpasse muito a sua barra. No Brasil colônia ele aparece na figura do senhor de engenho, que tal como seu congênere romano tinha poder de tudo decidir dentro de suas imensas propriedades agrícolas. Todos lhe deviam respeito e tudo o que tivesse que ser feito ou obtido dependia de conquistar a vontade do “soberano”. É com referências como essa que a figura paterna chega até nós, no estranho tempo em que vivemos.

No mundo pós-moderno, que vai se formando entre os séculos XX e XXI, a cultura ocidental tem tomado o caminho de “desconstruir” estruturas culturais consolidadas ao longo de milênios, e nesse movimento a família tradicional tem sido uma das instituições mais afetadas. Para o bem ou para o mal! Juízos de valor à parte, essas mudanças têm atuado no sentido de reconfigurar a figura paterna, aproximando daquelas noções que tradicionalmente são atribuídas às mães. Surge assim a figura do chamado “pãe”, ou seja, pais que se caracterizam pela incorporação de um perfil bem mais próximo da amizade, do companheirismo e do afeto. Rompendo com a tradicional máscara do autoritarismo, da tirania e da força como virtudes masculinas.

Apesar de muitos atribuírem certos problemas do mundo contemporâneo a esse ocaso da figura do pai tradicional, o fato é que estamos diante possivelmente de um caminho sem volta. Numa humanidade possivelmente mais madura, pode-se supor que os tradicionais papéis de pai e mãe percam as marcas radicais das famílias naturais e se aproximem das noções de igualdade, que já existem em tese nos direitos humanos e sociais, num contexto em que as antigas hierarquias instaladas nas famílias sejam dispensadas em favor de relações baseadas na fraternidade, na amizade e no amor.

Assim, seja lá como você trate o seu pai, velho, coroa ou quaisquer outros apelidos (uma das mais bacanas vantagens dessas transformações é poder inventar nomes para eles), seja também qual for o estilo que ele adote – tradicional, durão, bom de jogo, companheiro –, dê nesse domingo um grande abraço naquele que sempre estará ao seu lado em qualquer situação, mesmo que ele faça um esforço pra parecer durão (afinal homem não chora!). Faça melhor: além de abraçar, beije, despenteie o cabelo ou sente no colo dele. Ele pode até querer manter a fama de mau, mas garanto que não vai esquecer dessa homenagem pelo resto da vida. Um feliz Dia dos Pais para todos os leitores da coluna!!!


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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