Gregório de Matos e o barroco brasileiro


Quase toda a arte do chamado período colonial brasileiro se passa sob o estilo de época denominado como barroco. Mesmo quando na Europa ela já havia dado lugar a outras manifestações artísticas, aqui ainda se praticou um estilo de criação que ficaria conhecido como barroco tardio. Tratava-se de uma arte ainda com forte influência estética do que se fez no século barroco, o XVII, mas já portando vários elementos próprios do mundo pós-iluminismo, com sua valorização da ciência e da filosofia.

Um bom exemplo de como se mostrava difuso esse barroco tardio brasileiro é a arte sacra de aleijadinho nas Minas Gerais do Ciclo do Ouro, com suas referências religiosas repletas de contrastes, dicotomias e contradições (elementos tipicamente barrocos), praticamente contemporânea, naquela mesma província, da arte dos chamados árcades, que apostavam numa estética que procura resgatar os cânones clássicos do mundo greco-romano, combinando com temáticas que já permitem entrever os primeiros raios do ideário romântico, com muitas referências à terra, ao povo, à vida idílica, culminando no amor pela pátria, que leva ao nativismo e à independência política.

Mas em torno de um século antes, quando a estilística barroca ainda dominava na Europa e deixava seus reflexos do lado de cá do oceano, o Brasil teve dois grandes representantes. Um deles, Antônio Vieira, desfilando as características do estilo para escrever muitas obras de cunho religioso, dentre elas seus famosos sermões, além de outras criações que se aplicam a entender a complexidade do Brasil lusitano. O outro, Gregório de Matos, que além de também se destacar na temática sacra ainda se fazia notar pelas criações em outro tema presente na cultura barroca, a arte de satirizar. E nesse particular se revelaria um dos primeiros grandes leitores da sociedade brasileira. É desse que nos ocupamos aqui.

O barroco é por excelência o gênero dos contrastes, da convivência entre opostos, da distinção do bem e do mal. Esses extremos se expressaram inclusive na própria cultura literária barroca: ao lado de temas sacros, destinados a convocar as pessoas a uma atitude cristã e piedosa, uma vertente satírica, voltada para expor as chagas morais da humanidade e daí converter para a retificação religiosa. Gregório de Matos seria excelente nas duas, praticando de um lado uma poesia sacra com rara qualidade técnica e estilística, como se pode ver nesses trechos.

“És terra, homem, e ao pó hás de tornar-te / Vos lembra hoje Deus por sua igreja / Que a vós se faz espelho em que se veja / A vil matéria de que quis formar-te.

Te lembra Deus que és pó para humilhar-te. / E como o teu baixel sempre veleja / nos mares da vaidade onde peleja / Te põe a vista a terra onde salvar-te”.

Por outro lado, quem lê esses versos carregados de piedade e confiança na força da igreja católica talvez não imagine o Gregório de Matos capaz de construir uma poesia satírica, marcada por firme denuncismo dos desvios morais, às vezes beirando o chulo, inclusive empregando termos escandalizantes (não raro palavras de origem indígena ou africana) e mesmo palavrões, como podemos ver.

“Vossa luxúria indiscreta / é tão pesada, e violenta / que em dous putões se sustenta / uma mulata, e uma preta: / c’uma puta se aquieta / o membro mais desonesto, / porém o vosso indigesto, / há mister na ocasião / a negra para trovão / e a parda para cabresto”

A poesia satírica do barroco expressa uma vertente muito peculiar, que é a de configurar-se como arte popular, praticada nas praças, feiras e ruas do mundo, em contraste com o que se abordava quando as temáticas eram as da fé. Essa é assim mais uma dicotomia no barroco, a de ser uma arte que expressa o contraste entre o erudito e o popular, o sagrado e o profano, o refinado e o vulgar. E foi principalmente com suas letras satíricas e carregadas de maledicência que Gregório se destacou como grande observador da sociedade de seu tempo.

Ele nasceu na Bahia do século XVII, de família de muitas posses oriunda de Portugal, o que lhe permitiu uma formação de alto nível, nos melhores colégios jesuítas da então capital brasileira e posteriormente sua formação em Coimbra, a universidade dos filhos das elites nacionais. Tal histórico lhe renderia, já na volta à terra natal, um emprego na Sé da Bahia, na função de desembargador, naquele contexto um cargo da esfera religiosa, o que o colocava muito próximo, ao mesmo tempo, do poder da igreja, da convivência com os nobres e principalmente com o grosso da população de Salvador, com seus africanos, caboclos, indígenas e toda sorte de tipos populares.

Essa combinação, aliada ao estilo inquieto e desregrado de Gregório, daria origem a um dos tipos mais marcantes da literatura brasileira. Indisciplinado e perdulário, vivia em constante conflito com seus superiores eclesiásticos, que cobravam dele uma postura concernente ao cargo religioso que ocupava. De fato, para além das funções no clero, a vida do poeta era dividida entre as tabernas de Salvador, o colo das negras (pelas quais tinha fascinação) e as muitas brigas compradas com autoridades e abastados da cidade em função de seus versos ferinos, o que lhe daria a alcunha de “O Boca do Inferno”. Nesses versos, ridicularizava as famílias conhecidas, ironizava práticas e hábitos tradicionais e frequentemente escandalizava a sociedade, com suas muitas jornadas de bebedeira e libertinagem.

O alvo predileto da poesia satírica de Gregório de Matos eram justamente as altas classes da sociedade baiana de seu tempo. Sendo filho de família tradicional de Portugal, mas já decadente economicamente no Brasil do século XVII, o poeta não esconde um ressentimento contra a ascensão da nova elite nacional, agora formada por brasileiros de formação típica, mestiça e cabocla, apesar das referências a traços culturais de seus ancestrais europeus. Junto com eles, seus costumes pios e a hipocrisia religiosa, que tanto aparecem em suas obras mais ousadas.

O preconceito de Gregório não se restringe à mestiçagem dos ricos da colônia brasileira. Em seus versos a africanidade cada vez mais avassaladora da população baiana é vista quase sempre como um sinal de inferioridade e da constatação de nossa suposta inferioridade em relação aos europeus. As negras, que muitas vezes homenageia em suas poesias, são valorizadas quase sempre na medida em que o poeta lhes atribui as habilidades do sexo, que tanto o seduz.

Mesmo assim, no contexto da Bahia do século XVII, seus versos debochados e jocosos não deixaram de servir para as grandes massas de escravos e mestiços pobres como fator de vingança contra os poderosos e sua opressão de todo tipo sobre os deserdados. O que garantiria ao poeta o status de uma figura extremamente popular, ao mesmo tempo admirada e temida.

Avançando cada vez mais em seu estilo de vida perdulário e sempre se complicando com os poderosos por seus versos de troça e ridicularização, Gregório teria um fim de vida bem diferente do que em geral estava reservado a pessoas da sua estirpe e origem social. Dispensado do emprego na Sé, o poeta se dedicou inteiramente à poesia e suas jornadas de bebidas, sexo e excessos boêmios, até estourar completamente o patrimônio herdado da família e ficar na absoluta miséria.

Encerrou seus dias de forma itinerante em Salvador e no Recôncavo baiano, vivendo de outro de seus grandes talentos, a habilidade com a guitarra. Perdeu naturalmente prestígio social e passou a viver dentro do padrão de vida da maioria do povo soteropolitano de então, misturado a escravizados, alforriados, caboclos, sertanejos, portugueses pobres, indígenas, como um autêntico filho da Bahia. Não perdeu porém a veia poética e continuou produzindo uma literatura de grandes recursos técnicos, habilidade linguística e estilística de alto nível.

Sua história e sua literatura levaram muitos críticos literários que se dedicaram a analisar as letras barrocas brasileiras a afirmar em Gregório de Matos a antecipação de traços de uma tradição literária que se confirmaria nos séculos seguintes. Uma literatura repleta de ares populares e autenticamente brasileiros, que muitos enxergariam identificada com o ideário do romantismo brasileiro que apareceria quase dois anos mais tarde.

Por outro lado, também foi analisado como uma espécie de Macunaíma, por sua recusa em seguir, tanto artisticamente como enquanto personagem, padrões e imposições, se configurando como um tipo altamente diverso, complexo e de certa forma uma amálgama de todas as referências plantadas ao longo do Brasil lusitano. Um traço que o ligaria, dessa forma, às grandes questões que os modernistas trariam para o pensamento nacional já no século XX.

Gregório de Matos, assim, pode ser visto como um grande fundador da literatura nacional. Alguém que captou a alma e as complexidades da sociedade brasileira com uma acuidade singular e representou com toda a intensidade a primeira grande cidade do país, com todos os seus tipos e personalidades. Não à toa, a sua Triste Bahia foi musicada por Caetano Veloso em pleno exílio em Londres, sua arte sacra ganhou melodia por José Miguel Wisnick e interpretação de gala de Maria Betânia e ainda virou personagem de ficção no romance histórico de Ana Miranda. Não à toa, é um autor que ainda desperta interesse e motiva teses e interpretações dos setores culturais, artísticos e acadêmicos do Brasil.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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