Dia do Folclore


Essa semana foi comemorado o Dia do Folclore, uma homenagem que fazemos ao nosso passado, na medida em que os elementos abrangidos pelo folclore são a expressão de como pensaram e criaram nossos antepassados. Mas é interessante saber que nem sempre foi percebida a importância memorial ou histórica do folclore. Na verdade, só com o advento das ideias positivistas se sentiu uma necessidade de estabelecer um conceito de povo e consequentemente de suas manifestações.

Até esse momento não havia uma distinção clara entre o que era cultura popular e clássica ou erudita. Manifestações culturais como o carnaval, por exemplo, eram praticadas desde a Era Medieval pelos nobres e abastados da mesma forma – e frequentemente nos mesmos eventos – que pelos menos favorecidos. Fidalgos e gente do povo tinham acesso às mesmas criações dos antepassados. Não havia, em suma, a noção de que as tradições fossem mais identificadas a um grupo do que a outro.

O advento do cientificismo do século XIX e o estilo de vida burguês que começa a se estabelecer a partir das “luzes” da ciência iniciam essa distinção que acabaria por tornar necessário um estudo mais aprofundado de como as tradições expressavam a “alma do povo” e a necessidade de preservar essas manifestações num mundo que se moderniza, se reveste de máquinas e invenções e que relega o subjetivismo a um plano secundário.

A Alemanha seria um dos grandes cenários dessa sistematização do folclore, principalmente a partir da filosofia desenvolvida por Johann Gottfried Herder e da recuperação de vários contos e canções populares empreendida pelos irmãos Grimm, que ajudaram a popularizar muitas histórias que se tornariam de conhecimento universal.

As transformações políticas que se processam na Europa, como consequência do iluminismo, também foram importantes para estabelecer e valorizar as tradições populares. Movimentos separatistas e processos de independência que ocorreriam no Oitocentos se utilizaram largamente das manifestações folclóricas, já que as expressões de nacionalismo, atuando como motor daquelas transformações, buscaram elevar o conceito de “povo”, valorizando dessa forma suas expressões mais remotas no tempo e no espaço.

No Brasil, esse processo também teve a sua expressão. O povo também era compreendido na sua dimensão autóctone, isto é, as primeiras formas de organização social começaram a ser vistas como representantes da mais pura tradição de um povo ou lugar. Com a independência no início do século XIX, vários de nossos homens de letras, seguindo o influxo do pensamento europeu e adaptando-o ao contexto brasileiro, focaram o índio como a mais fundamental expressão da nação então nascente.

A valorização das expressões folclóricas entre nós ganha um impulso importante no século XX a partir dos estudos de Mário de Andrade, que, integrante do grupo que promove a Semana de 22, influencia o movimento modernista com as várias expressões de cultura popular resultantes de suas muitas pesquisas pelo interior do Brasil.

O Modernismo propõe uma releitura do Brasil essencial e assim dialoga com os escritores românticos e suas muitas referências ao folclore nacional. Daí surgiriam grandes expressões da criação artística brasileira em obras como Martin Cererê, de Cassiano Ricardo; as cantigas populares recuperadas e transcritas por Villa-Lobos; e o Macunaíma, com o próprio Mario de Andrade.

Apesar de situado ideologicamente em lado oposto ao dos modernistas, Monteiro Lobato se tornaria a grande referência nacional em termos de criação inspirada no folclore nacional. Os seres, personagens, histórias, cantigas, cenários presentes em sua obra embalaram várias gerações de brasileiros, colocando as expressões do nosso folclore em patamar privilegiado no imaginário e nos costumes populares.

O século XXI, marcado pela lógica aterradora dos meios tecnológicos, tende a condenar as expressões folclóricas com mais força do que a própria cultura positivista burguesa conseguiu fazer. Mas esse contexto em nada altera o status de expressão cultural profunda presente nas manifestações folclóricas. Por isso, em mais um dia do folclore sempre é tempo de revisitar as tradições e origens de nosso povo, o que confere à escola e sua valorização dessa temática um papel fundamental de proteção da cultura em suas expressões mais genuínas.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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