Viver com deficiência fora do barulho da cidade

Por Laís de Souza Domingos*


Quando falamos em inclusão, a primeira imagem que costuma vir à mente é urbana: escolas cheias, salas apertadas, filas no SUS, transporte público lotado, falta de acessibilidade em cada esquina. Mas… e quem vive com deficiência longe desse barulho todo?

Essa pergunta começou a ecoar em mim com mais força depois que me tornei moradora de Tinguá, área rural de Nova Iguaçu. Aqui, o tempo tem outro ritmo. O ônibus demora. As clínicas são longe. Mas a vida também é mais silenciosa, mais circular, mais comunitária. Isso me fez olhar para a inclusão sob outro ângulo: o do território. 

Há uma tendência de enxergar o campo como ausência. Ausência de políticas, de estrutura, de diagnósticos. E claro, tudo isso precisa ser levado a sério. Mas e se, mesmo com essas lacunas, o ambiente rural também oferecesse algum tipo de cuidado? Um cuidado que não se mede por equipe multidisciplinar, mas por reconhecimento, vínculo e previsibilidade?

Conversei com uma amiga, estudante de Geografia na UFRRJ e mãe de uma criança com TEA (Transtorno do Espectro Autista), que vive essa realidade. Antes de morar no campo, ela trabalhava longe de casa, em Bonsucesso, e dependia da mãe para buscar o filho na creche. Foi a própria creche que sinalizou comportamentos diferentes e sugeriu uma avaliação neurológica. A partir do diagnóstico, ela precisou sair do emprego para cuidar dele e garantir o acesso às terapias. 

O barulho da rua e de uma igreja em frente à antiga casa desregulavam seu filho com frequência. Desde que se mudaram para uma área mais silenciosa, ela percebeu mudanças significativas. O filho passou a dormir a noite toda, coisa que não acontecia antes. Ganhou espaço para brincar livremente no quintal. As crises diminuíram. E mesmo com a distância, ela conseguiu acesso a mais terapias do que na cidade, onde a fila de espera era longa e frustrante. 

Ela me contou que, na nova comunidade, o filho é tratado com carinho, paciência e acolhimento. Os vizinhos sabem que ele é autista, e isso não é motivo de afastamento. Pelo contrário. Acolher, ali, parece mais natural. O que ainda pesa é o acesso: algumas terapias só estão disponíveis no centro de Nova Iguaçu. São poucas senhas, é preciso chegar cedo com a criança, e muitas vezes ele se desregula com o cansaço do trajeto.

Quando pedi que ela resumisse tudo em uma frase, respondeu sem hesitar: morar fora do barulho da cidade foi a melhor opção para a qualidade de vida do meu filho e da nossa família. A jornada é difícil, mas pode ser vencida com amor. 

Esse relato me faz pensar que inclusão não acontece só dentro da escola, nem só nas terapias. Também se constrói no território, no ritmo da vida e no modo como uma comunidade acolhe ou não quem foge dos padrões. 

É verdade que faltam políticas. Faltam serviços próximos, escolas estruturadas, formação docente com foco real em diversidade. Mas talvez também falte escutar quem vive fora dos centros. Falta alguém ir até lá não para avaliar, nem para ensinar, mas para ouvir. Porque inclusão, no fundo, é isso. Reconhecer outros jeitos de viver e entender que eles também têm valor. 

A cidade corre. O campo respira. E talvez seja nesse silêncio que muitas pessoas se sintam, pela primeira vez, acolhidas de verdade. 


*Laís de Souza Domingos é psicopedagoga, neuropsicopedagoga e professora da Sala de Recursos Multifuncionais – Rede Municipal de Nova Iguaçu.  


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