A cultura do cancelamento

Entenda esse movimento que tem força principalmente nas redes sociais e levanta questões importantes a serem debatidas


Celebridades como Anitta, Bianca Andrade, Alessandra Negrini e Kevin Hart foram alguns exemplos de “cancelados” nas redes sociais. Hart havia sido escolhido para fazer uma performance na cerimônia do Oscar de 2019, mas acabou não subindo ao palco porque foi “cancelado” depois que as redes sociais recuperaram uma série de piadas homofóbicas que ele fez no começo da sua carreira. Mas afinal o que significa e o porquê de cancelarem pessoas? Reunimos nessa matéria informações e opiniões de especialistas acerca dessa questão que pode se tornar um tema para redação ou um debate em sala de aula. Confira!

A prática de cancelar pessoas começou no Twitter e está relacionada ao movimento #MeToo, onde mulheres das mais diversas origens escolheram compartilhar seus traumas referentes a abuso sexual para expor pessoas poderosas há muito tempo impunes.

A série de denúncias de assédio sexual contra esses poderosos se espalhou pelo mundo a partir de 2017, o que fez com que vários agressores fossem “genuinamente ostracizados em uma onda cultural de alta velocidade impulsionada pelas redes sociais”, segundo descreve o jornalista Osita Nwanevu em uma análise na revista americana New Republic.

A psicóloga Elisa Bichels, especialista em terapia cognitivo-comportamental, processual e dialética, ressalta que os nichos sociais se formam não apenas por afinidade, mas por inimizade também. “Saber disso é o primeiro passo para entender o atual ‘mecanismo’ da cultura do cancelamento. ‘Cancelar’, na linguagem da internet, é a difamação, exclusão e banimento de um membro ou grupo de uma comunidade por outros membros da mesma comunidade. Hoje em dia, vários ‘grupinhos’ se separam ou se fortalecem baseados nas pessoas que eles ‘cancelaram’ em comum”, explica.

O psicanalista Lucas Liedker, que tem avançado em seus estudos nessa temática, explica que o cancelamento enquanto fenômeno está alinhado ao pensamento neoliberal em que vivemos. “Onde pautamos as nossas escolhas pela mentalidade de consumo e da substituição. Podemos deixar de comprar produtos de uma empresa envolvida em um escândalo ambiental, assim como cortamos os vínculos com um familiar em função de seu posicionamento político”, garante.

Elisa e Rafael Bichels, este último estudante de psicologia do 9º período da UFRJ, chamam atenção para o fato fazendo um paralelo, dadas as devidas concessões, “à guilhotina do século XVIII, que prometia justiça à população da França, acabando com o abuso de privilégios. Entretanto, tal como a guilhotina, cancelamentos podem se tornar uma forma de espetáculo um tanto quanto sádica”.

 

Os dois lados da moeda

Os Bichels atentam para o fato de que existem duas vertentes do debate quanto à cultura do cancelamento. De um lado pessoas poderosas que estão sendo cobradas de suas ações e reclamam que sua liberdade está sendo limitada pelos “mimizentos”. E do outro uma infinidade de anônimos na internet que negam que exista tal coisa de cultura do cancelamento, e que os privilegiados simplesmente estão desacostumados à prestação de contas das pessoas comuns. “Nenhum desses lados está com a razão, e é uma grande falácia reduzir a discussão a linchamentos relacionados ao ‘politicamente correto’”, garantem.

A especialista aponta também alguns padrões que podem ser reconhecidos no processo de cancelamento de uma pessoa:

    1. A adulteração da história, nesse caso o comportamento dado como problemático, para algo objetivamente pior através do “telefone sem fio”.
    2. A pressuposição de culpa, independente de qualquer pessoa envolvida no cancelamento ter certeza de que a ação problemática de fato aconteceu da maneira que é dita.
    3. A abstração dos detalhes específicos do comportamento em questão para uma afirmação mais genérica, geralmente mais palatável. Um exemplo bastante recente foi o uso da palavra “viado” pelo participante do BBB20 Babu, que instantaneamente no Twitter passou de “Babu usou uma palavra do linguajar regional” para “Babu fez um comentário homofóbico”.
    4. A tendência ao essencialismo característica da cultura da internet atual como um todo, generalizando um comportamento até o ponto em que não se está criticando uma ação isolada, mas a pessoa como um todo. Seguindo ainda o exemplo de Babu, tão rápido quanto abstraímos seu comentário fora de contexto, passamos de “Babu fez um comentário homofóbico” para “Babu é uma pessoa homofóbica”.

Arte por Beró

    1. O pseudo-intelectualismo utilizado pelas pessoas envolvidas no cancelamento para justificar os níveis aos quais pode chegar a vilificação de uma pessoa, geralmente abusando de princípios morais absolutamente válidos para encaixar em sua narrativa.
    2. A incapacidade de perdoar, uma vez que toda e qualquer justificativa vai ser lida como falsa ou uma medida de relações públicas. Quando uma desculpa é rejeitada, é usada como mote para continuar a difamação e, quando é temporariamente aceita, ela será negada e ignorada da próxima vez que a pessoa cancelada falhar em “pisar em ovos”.
    3. A propriedade contagiosa do cancelamento, ou seja, todas as pessoas que apoiarem, se relacionarem ou darem uma plataforma a alguém considerado cancelado é necessariamente tão problemático quanto o primeiro.

Segundo a psicóloga, em quase todos os casos nem todos esses padrões são repetidos, e a grande maioria das pessoas envolvidas em um cancelamento não o faz por malevolência, nem está sendo insincera. “A verdade é que a maior parte das verdadeiras vítimas da cultura do cancelamento não são os alvos de uma ‘caça às bruxas’, mas sim aqueles onde uma enorme controvérsia é manufaturada por cima de uma ação ou comentário problemático, afetando a vida profissional e pessoal como um todo, ao ponto de se tornar uma forma de espetáculo. Sedentos pela sensação de contas prestadas, nos esquecemos de que existe uma grande diferença entre responsabilizar uma pessoa que de fato fez mal a alguém ou a um grupo de pessoas e criticar uma pessoa que fez um comentário maldoso, inclusive em questão de punição”, explica Elisa.

A especialista pondera ainda que não devemos esquecer que piadas, ironias e mesmo reclamações quanto à cultura do cancelamento muitas vezes são usadas como uma cortina de fumaça por pessoas poderosas “que não querem seus privilégios revogados para esconder suas verdadeiras intenções, mas também é importante ficar atento às consequências que acusações frívolas podem causar, principalmente quando são usadas para escalar conflitos ao invés de resolvê-los”, finaliza.


Por Jéssica Almeida


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