O que o português do Brasil herdou da África?
Por Sandro Gomes*

Nesse mês em que celebramos no país o Dia da Consciência Negra, vamos dedicar a coluna a algumas considerações sobre os falares africanos e as suas muitas influências na forma brasileira de utilizar o português. Em geral, os estudiosos das contribuições dos falares africanos destacam duas grandes influências, provenientes de duas matizes culturais de grande importância ao longo dos anos. São elas:
a) as línguas originárias dos povos de cultura banto, praticantes de idiomas que muito influenciaram a nossa maneira de falar o português, como o bacongo e o ovimbundo.
b) as línguas provenientes dos grupos culturais da África Ocidental, com destaque para um idioma formado por uma infinidade de falares semelhantes, que entre nós ficou conhecido como iorubá.
A forma de os africanos empregarem a língua portuguesa que aprenderam aqui é um estudo muito importante, porque daí saíram vários fenômenos linguísticos que estão no dia a dia, na oralidade e nas criações brasileiras. Vamos conhecer alguns deles?
– Omissão da última consoante nas palavras: as formas infinitivas dos verbos são um bom exemplo. Os portugueses pronunciam muito claramente o “r” final dessas palavras e até acrescentam mais alguma coisa (exemplos: falaire, dizere etc.). Entre nós esses fonemas finais praticamente não são pronunciados e, quando o são, constituem uma flagrante exceção. Assim, basta observar a fala de qualquer brasileiro para percebermos frases como:
Vou te dizê uma coisa.
Chega de falá nisso!
– Palatalização das consoantes “d” e “t” quando precedem a vogal “i”: o falar dos povos de origem africana popularizou por todo o país pronúncias como as que a maioria de nós usa em palavras como “dia” (djia) ou “artigo” (artchigo). Essa forma de falar se espalhou com tamanha intensidade que acabou por transformar-se na forma padrão do português brasileiro. A tal ponto que se costuma classificar como falar regional ou sotaque a forma com que palavras com esse fonema são pronunciadas, por exemplo, na região Nordeste, onde o uso preserva o falar mais próximo dos portugueses.
– Dissimilação: trata-se de um processo de mudança linguística em que há a troca de um ou mais fonemas, resultando em um diferente. A palavra perigo (“peligro”, no idioma de origem) é um bom exemplo. É conhecida dos estudiosos da língua portuguesa a dificuldade de alguns falantes de idiomas vindos da África de pronunciar certos grupos consonantais. O resultado, nesse caso, foi a supressão do “r”, provocando mudança no próprio radical, como se pode ver em alguns exemplos de derivação: perigoso, periguei etc.
– Aférese: ocorre quando há uma supressão de fonemas no início da palavra. São atribuídas aos falares africanos formas como tá (está), falada generalizadamente em todo o país, e ocê (você), muito praticada em algumas regiões brasileiras.
– Redução: é a alteração nos ditongos “ei” e “ou”, também atribuída à pronúncia de falantes africanos, e que constitui outro fato bastante presente em nosso cotidiano. Deu origem a pronúncias como chêro em vez de “cheiro” e lôco no lugar de “louco”.
– Apócope: constitui um falar bem típico das pessoas do interior do Brasil quando ocorre a supressão de fonemas, principalmente o “l” e o “r”, no final das palavras. São os casos de vocábulos como generá (general) e mé (mel), muito usados na fala espontânea de muitos habitantes de certas regiões do país, independente da escolaridade e do domínio da norma culta (mesmo muitos escolarizados pronunciam dessa forma).
– Vocalização: trata-se de outro processo muito comum na fala registrada pelo interior brasileiro, onde encontramos termos como muié (mulher) e oiada (olhada). Nesses exemplos ocorre a substituição do “lh” pelo “i”, processo que consiste em empregar fonemas nos quais predominam sons vocálicos no lugar daqueles que originalmente mantinham sons consonantais. Devemos a esse processo a própria forma de pronunciarmos o nome do nosso país: Brasiu, com “u” no final em substituição ao “l”, pronunciado de modo muito palatal pelos portugueses.
– Ditongação: encerrando esse rico estudo dos falares brasileiros influenciados por falantes de origem africana, usamos mais um processo de formação de palavras. A ditongação consiste na inclusão de uma semivogal ao lado de uma vogal já existente, formando um ditongo. Palavras como “mês” ou “paz”, que em muitos pontos do país se pronuncia como se houvesse a inclusão de um “i” (meis, paiz), são alguns exemplos.
Alguns dos casos citados acima ocorrem com muita frequência na fala popular de áreas menos atingidas pela cultura urbana, o que em nada reduz seu valor linguístico, haja vista que tais formas de expressão foram sempre representadas em termos estéticos, por nossos grandes expoentes da literatura.
Aqui abordamos apenas alguns casos, mas não há dúvida que se está diante de um assunto muito vasto e que ainda carece de mais pesquisas. Se você se interessa por esse assunto, quem sabe não nos trará algumas novidades? Os estudos da língua portuguesa falada no Brasil certamente vão agradecer. Até a próxima, pessoal!
*Sandro Gomes é graduado em Língua Portuguesa, Literaturas brasileira, portuguesa e africana de língua portuguesa, redator e revisor da Revista Appai Educar, escritor e Mestre em Literatura Brasileira pela Uerj.












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