A influência africana na língua portuguesa – parte II


Amigos, vamos então para a segunda e última parte desse artigo dedicado a conhecer as contribuições dos falares de origem africana para o português que falamos no Brasil. Agora vamos falar de morfologia, sintaxe e criação literária.

A morfologia e a sintaxe do português brasileiro também foram afetadas pela presença de idiomas de origem africana entre nós. O substantivo invariável na língua popular é um bom exemplo. No modo de falar à primeira vista atribuído aos falantes “caipiras”, mas certamente registrado em todo o país, frequentemente os substantivos aparecem sem a marca de número, sendo possível identificar o plural apenas pela sua presença nos artigos. Veja a frase:

“Vim vê na procissão lôvado-seja / o malassombro das casa abandonada…”

Nesse trecho em que o compositor Elomar Figueira de Mello retrata a linguagem popular dos habitantes do sertão nordestino, pode-se ver (e entender) claramente a sentença, apesar de a indicação do plural só ocorrer na contração da preposição com o artigo (das), não chegando nem ao substantivo (casa) e nem ao adjetivo (abandonada). Em nossa fala corrente, no dia a dia, quantos exemplos semelhantes não vemos? Alguns estudiosos chamam a atenção para o fato de que as línguas derivadas do tronco iorubá não utilizam o “s” para indicar o plural, empregando partículas antes dos verbos para indicar o número.

Também se pode observar essa influência ao analisarmos o uso do pronome tônico como objeto. Segundo o prof. Silvio Elia, um dos grandes no estudo da língua portuguesa entre nós, o uso do pronome na forma tônica e de modo reto (originalmente usado como o sujeito) como objeto seria em função de que em algumas línguas africanas não há uma diferença causal entre sujeito e objeto, favorecendo a que o uso se fizesse de forma indistinta. Acompanhe o exemplo:

O pai recebeu ele de braços abertos.

O pronome reto “ele”, que pela norma culta deveria portar-se como sujeito, aparece neste exemplo de fala popular com a função de objeto direto. No registro culto empregaríamos o pronome átono “o”, com o que ficaria:

O pai o recebeu de braços abertos.

Há ainda o fenômeno de frases de características adverbiais funcionando como sujeito. Trata-se de um caso bem interessante em que construções introduzidas por preposições tendentes à indicação de lugar (advérbio) funcionam como sujeito de orações. Observe:

Na minha escola aceita certificado em vez de diploma.

Na minha escola, ao mesmo tempo que oferece uma indicação de lugar onde algo se passa, também é o termo que pratica a ação de “aceitar”, logo funcionando como um sujeito. Trata-se de uma construção que não é corrente no português europeu, mas que algumas vezes aparece em sentenças de algumas línguas provenientes do troco linguístico bantu, daí linguistas atribuírem tal construção à influência de certos usos morfológicos de idiomas vindos da África.

O uso do objeto necessariamente após o verbo é outra característica atribuída a falares africanos, sendo um traço muito comum em idiomas do tronco iorubá, por exemplo. Assim, construções típicas do português europeu teriam recebido adaptações no modo de falar brasileiro. Veja o exemplo:

No português europeu:

Eu a vi ontem à tarde.

No falar brasileiro:

Eu vi você ontem à tarde.

Repare que, no uso entre nós, “você”, um pronome de tratamento, que deve ter a função de sujeito, acaba usado como o objeto direto da oração. No caso de Portugal, foi usado um pronome oblíquo e antes do verbo, o que não é admissível em idiomas de origem africana, como o citado.

A criação literária não ficaria de fora na contribuição para o registro dos falares africanos no Brasil. Isso aconteceu principalmente a partir da atitude artística de vários autores nacionais que, através de pesquisas, incluíram em suas obras elementos de idiomas trazidos até nós por meio dos povos escravizados da África. Os prosadores do Regionalismo foram pródigos em apresentar essas construções em seus textos. Um bom exemplo temos em José Lins do Rego.

“E com um feitor como Nicolau, banzeiro, de iniciativa quase da mesma espécie da minha.”

Esse período aparece no romance Banguê, onde o termo em negrito é corrente no vocabulário usual da região abordada na obra, a zona açucareira nordestina. A palavra deriva de “banzo”, termo provavelmente de origem bantu, que se refere, entre outras coisas, à saudade que indivíduos tornados escravos tinham de sua terra de origem.

Gregório de Matos, o grande poeta do barroco brasileiro, é outro autor que registra uma grande abrangência de palavras de origem africana, fruto da convivência intensa que manteve com usuários de tais falares na sua Bahia do século XVII. Acompanhe a seguinte quadra.

 

“O chouriço grande é paio

Não sabe ler a guariba,

Quem tem carcunda tem jiba,

Antes de junho está maio.”

A palavra “carcunda” (pela forma culta, “corcunda”) aparece nesse poema satírico, e é derivada do quimbundo, estando presente até hoje no português do Brasil e com o mesmo sentido. Também do “Boca do Inferno” se extrai outro exemplo de palavra oriunda da África, também do quimbundo, e abundantemente usada em nosso falar cotidiano.

Xinga-te o negro, o branco te pragueja

E a ti nada te aleja. “

Pra finalizar, um trecho do poeta pernambucano Ascenso Ferreira, integrante do movimento modernista, que utilizou muitos termos de origem africana em seus textos recheados de abordagens de costumes e falas populares de sua região.

 

“Nem uma lâmina d’água no rio exausto,

Em cujas areias as emas esmolambadas

espojam-se a gritar!…”

O termo em negrito deriva de molambo, palavra quimbunda que significa “trapo” ou pano velho ou gasto. Um termo muito corrente no falar de todo o país, e que aqui aparece em pleno processo de derivação de palavras característico da Língua Portuguesa, utilizando prefixo e sufixo.

Amigos, muitos outros exemplos poderíamos mostrar de como os nossos escritores, ao abordar os falares e sentidos do idioma corrente, nos deixaram um grande acervo de palavras de origem africana, que muito demonstram o teor de sua contribuição para uma prática linguística indiscutivelmente brasileira.

Leia também: “Uma abordagem teológica da religiosidade afro-brasileira”


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


Deixar comentário

Podemos ajudar?