Um Brasil “hablando” espanhol? O domínio espanhol no Brasil


Tradicionalmente somos vistos como uma espécie de estranho no ninho dentro da chamada América Latina, em função de nossa formação lusitana em contraste com a espanhola que predomina em quase todo o continente. Essa situação é pronunciada a tal ponto, que muitos não sabem que o país já esteve sob domínio espanhol, num período que aliás teria importantes consequências para a própria história brasileira.

O domínio de Castela sobre o Brasil ocorreu entre 1580 e 1640 num contexto que teve seu marco inicial em um fato histórico até hoje muito emblemático para os portugueses: a derrota e a morte (ou desaparecimento?) do rei Dom Sebastião, em 1578, após um tentativa desastrada de se apossar de terras do norte da África e reeditar importantes conquistas territoriais do passado lusitano. As tropas porém sucumbiriam diante da força demonstrada pelo sultão Mulei Moluco, do Marrocos.

Os resultados não podiam ter sido piores para os portugueses. Além da traumática perda do rei Sebastião e dos muitos prejuízos financeiros com a derrota na guerra, o país passaria a ser comandado justamente pelo monarca de seus grandes rivais ibéricos. Em virtude de problemas na sucessão entre a família real portuguesa e do casamento, por interesses monárquicos, entre nobres das duas nações, um certo impasse se formou quanto a quem deveria assumir o trono. Em meio a essas definições, o rei Felipe IV consegue atuar nos bastidores e convencer parte da nobreza portuguesa a apoiá-lo no projeto de assumir o papel de comandar todo o mundo ibérico, algo que desde muito tempo tinha sido um velho desejo dos antigos nobres de Castela.

Os historiadores ao longo do tempo levantaram várias hipóteses para explicar o interesse do rei espanhol em assumir também o trono e as possessões portuguesas. Isso porque, à primeira vista, comandar as imensas terras lusitanas na América não traria grandes vantagens econômicas (as riquezas do Brasil ainda não tinham se revelado sedutoras como ocorreria mais tarde) para quem já explorava riquezas semelhantes e abundantes no restante da América. Além disso, as muitas tentativas de invasão da costa brasileira por outras nações europeias, como França e Holanda, eram prenúncio de muitos gastos com guerras para impedir a perda de territórios para esses rivais do continente.

Um risco que muitos entenderam como desnecessário para um império que naquele momento do século XVI era simplesmente o maior do mundo, suplantando em extensão territorial o próprio império romano e jamais ficando atrás do que os ingleses estabeleceriam pelo mundo três séculos depois. Mas algumas explicações se impuseram como as mais prováveis no momento de historiadores chegarem a uma compreensão do que estava por trás do interesse do rei Filipe em dominar também a coroa portuguesa.

Se tratando da coroa espanhola, tradicionalmente engajada nos projetos do catolicismo, pode-se afirmar que uma das mais elementares preocupações com o expansionismo estava relacionada à possibilidade de satisfazer a prerrogativa sustentada pela igreja de que a religião deveria se impor sobre todo o mundo. Dessa forma, parecia algo fundamental para o maior império do planeta garantir o predomínio do cristianismo, o que poderia ser ameaçado, caso holandeses e franceses, por exemplo, povos com grande presença calvinista, triunfassem em seus projetos de se apoderar de partes da América, como poderia ocorrer nas possessões portuguesas, mais vulneráveis teoricamente que o império espanhol.

Uma outra causa frequentemente citada pelos estudiosos para justificar o empenho de Felipe IV em assumir o comando também do império português tem a ver com as imensas reservas de prata situadas no interior do continente, nos atuais Peru e Bolívia principalmente. A presença portuguesa nas diversas possessões marítimas deixou bem clara a sua menor efetividade quanto à estratégia de se avançar para o interior, o que, ao contrário, constituía um traço bem característico da forma de ocupação espanhola. Assim, comandar também as possessões lusitanas representou um mais rápido expansionismo na direção da região mineral da América do Sul, impedindo que outras nações europeias chegassem a esse cobiçado ponto.

Essas circunstâncias acabaram tendo um papel decisivo para a história brasileira. Foi sob essa filosofia espanhola que valorizava o desenvolvimento em direção ao interior que a atividade bandeirante, tão fundamental para a ampliação do território do país, atuou com mais fôlego. A unificação do continente sob a coroa de Castela também representou uma facilidade maior em não respeitar o tratado de Tordesilhas, que delimitava as possessões das coroas ibéricas no continente.

Apesar de não ter sido oficialmente extinto com a chegada ao trono de Felipe IV, a percepção entre súditos de ambos os lados era a de que se tratava de uma espécie de área franca. Quando a autonomia foi restaurada, muitas terras que o tratado reservava à Espanha ficaram definitivamente em poder de Portugal.

Uma outra importante herança dos oitenta anos de duração do poder da coroa espanhola sobre o Brasil foi a organização e o estabelecimento das normas jurídicas. Apesar de existir uma legislação lusitana que regia a vida social nas possessões, era grande a dificuldade em estabelecer certos princípios jurídicos, em função principalmente da menor presença do estado português no cotidiano, o que deixava o caminho aberto para o surgimento de feudos de poder autônomos na prática, exercido por indivíduos portadores de muitos recursos e posses.

Os espanhóis, ao contrário, conseguiram impor com mais eficiência as ordenanças filipinas, o que lhes permitiu um maior controle sobre o que acontecia por aqui. Esse código estipulava com mais clareza a organização e os papéis a serem desempenhados pelos juízes, além de introduzir formas de punição que seriam mais bem-sucedidas, como o sistema de multas, por exemplo.

Foi também do tempo do domínio espanhol a prática jurídica de criar formas autônomas de justiça para certas categorias, como os militares e os religiosos, que não eram julgados segundo as leis que regiam a totalidade dos civis. A influência da legislação filipina seria tão grande na vida jurídica do país, que muitos pontos desse código não só se mantiveram depois do fim da União Ibérica, como chegaram a atingir o Brasil pós-independência, só recebendo nova leitura com o estabelecimento do código civil de 1917.

Apesar dos muitos benefícios – e também dos muitos males – da presença espanhola na administração do Brasil, a União Ibérica começou a demonstrar no século XVII os seus primeiros sinais de desgaste. Os muitos problemas enfrentados pelos espanhóis, principalmente pela relação muito turbulenta e belicista com outras nações expansivistas da Europa, foram tornando desinteressante do ponto de vista financeiro a continuidade do reinado sobre a coroa lusitana. Muitos historiadores vão sugerir que iniciativas dos próprios espanhóis se encarregaram de apressar o fim do domínio sobre Portugal, sendo um dos sinais mais evidentes disso o rompimento do Tratado de Tomar, que em 1581 fora assinado, garantindo privilégios para nobres e comerciantes portugueses mesmo com a hegemonia da coroa de Castela.

Fatos como esses despertariam na nobreza lusitana o anseio de restauração da antiga autonomia, levando-os a uma série de ações que culminaram na entrada do duque de Bragança, coroado como João IV de Portugal, no palácio que antes do estabelecimento da União Ibérica era a sede da monarquia lusitana. O trono fora recuperado, aproveitando-se de um momento em que o rei Filipe se encontrava ausente, em batalha com os franceses, em mais um de seus muitos arroubos belicistas contra nações rivais, que no final das contas acabaria por causar a decadência do império espanhol, que até então reinava amplamente em quatro continentes.

Os estudiosos aliás apontam o perfil intolerante e pouco dado a métodos diplomáticos do rei Filipe IV como a principal causa do declínio do país. No final das contas, os 80 anos de União Ibérica não foram de todo ruim para os portugueses. Afinal, muitas terras que antes pertenciam à Espanha tinham passado para o domínio lusitano, mesmo com a nobreza estando submissa a Castela. Essas possessões acabaram ficando em definitivo como parte do território português. Além do mais, com a restauração do trono, foi possível investir numa política de tratados, que garantiram o fim das invasões de ingleses e franceses das terras na América.

Se para o Brasil os anos de União Ibérica acabaram sendo decisivos, não apenas pelo significativo aumento do território como pela estrutura jurídica que ajudou na consolidação do país, para os portugueses o final da história também foi marcado por alguns avanços. Além das vantagens já citadas há a importante questão do orgulho nacional, antes fortemente ferido com a perda da autonomia justamente para o seu rival histórico.

Culturalmente falando, o fim da União Ibérica garantiu a pluralidade cultural que é talvez a mais importante característica do continente sul-americano, na sua exuberância de referências diversas, convivendo em situação de relativa harmonia, o que talvez não ocorresse sob a administração muitas vezes autoritária e intransigente da coroa de Castela, sob comando da dinastia filipina.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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