Lei 10.639

O Resgate da História do Negro no Brasil

Carlos Santana (*)

A Lei nº 10.639 é o resultado do esforço do Movimento Negro. O que preocupa é a distância entre a lei e a realidade. Cabe ao movimento e à sociedade civil a cobrança para o seu cumprimento. Temos, se necessário, que acionar os municípios via Ministério Público, para que as autoridades responsáveis (secretarias de educação) implementem a lei.

O Brasil importou 4 milhões de africanos durante os quatro séculos de tráfico transatlântico. A essas vítimas somaram-se 40 milhões de crioulos, escravos já nascidos em terras brasileiras. Foram inúmeras as revoltas e diversas formas de resistência desenvolvidas pelos negros escravizados. Um dos principais e mais conhecidos quilombos foi o de Palmares. O Estado Brasileiro reconheceu Zumbi como herói nacional, todavia Domingos Jorge Velho e outros bandeirantes, responsáveis pela destruição de quilombos, caçadores de negros fugidos, aprisionadores de povos indígenas, continuam a ser homenageados e lembrados em logradouros públicos. Não existe no Brasil nenhum monumento ou memorial aos 44 milhões de vítimas da escravidão. O crime de lesa-humanidade permanece impune, a memória das vítimas não foi reparada e os seus descendentes continuam vítimas dos seus efeitos.

Mas as reparações poderiam ser feitas com políticas públicas que viessem a atender aos negros, esse grupo étnico que ainda carece de uma vida digna em nossa sociedade. Dentro dessa filosofia surgiu a questão da política de cotas nas universidades, porque, da forma como a sociedade brasileira foi montada, dificilmente o negro consegue hoje alcançar o mesmo espaço que os brancos.

Então estamos lutando pela implementação de ações afirmativas que possibilitem acesso ao trabalho e à educação, que passam pela política de cotas nas universidades e pelo Fundef (Departamento de Financiamento da Educação Básica), órgão que define políticas públicas. Do mesmo modo, buscamos a aprovação do estatuto da Igualdade Racial e da implementação da Lei nº 10.639, que vai resgatar a história do negro no Brasil.

A escravidão e o tráfico de escravos são considerados crimes contra a humanidade, não apenas em função do seu terrível barbarismo, mas também pela sua magnitude, natureza organizada e especialmente pela negação das vítimas. Reconheceu-se que os Africanos e Afro-descendentes, como vítimas destes atos, continuam a ser alvo das suas conseqüências. Temos que honrar a memória de homens, mulheres e crianças como meio de reconciliação, contribuindo para restaurar a dignidade das vítimas através dos meios apropriados.

Na discussão acerca das reparações, o tema da memória ocupa, portanto, um lugar relevante: não é possível reparar os danos do passado sem recuperar a dignidade das vítimas. A guerra civil de 1932, conhecida como Revolução Constitucionalista, durou 85 dias e resultou em 830 soldados paulistas mortos. Para homenagear estes mortos foi construído em São Paulo um grandioso obelisco sobre o mausoléu dos heróis de 32, parte do conjunto arquitetônico projetado por Oscar Niemeyer para o Parque do Ibirapuera.

Na Conferência Mundial de Combate ao Racismo, o mundo todo foi à África do Sul discutir a questão da discriminação, da etnia. E nessa discussão todos falaram em reparação. Os povos que lá estavam concordaram que o racismo é conseqüência da escravidão, assim como o Holocausto foi um crime de lesa-humanidade. Do mesmo modo que o povo judeu foi mutilado com a perseguição de que foi vítima, o povo negro sofreu um Holocausto do qual padece até hoje com as não-reparações.

O povo judeu até teve reparação feita principalmente pelos bancos alemães, entidades que financiaram Hitler na sua tentativa de realizar essa grande carnificina. Já em benefício da comunidade negra nada foi feito. Não houve nenhum país do mundo com um projeto de reparação, mesmo sendo de conhecimento geral que a economia da maioria dos países que recorreram à escravidão foi calcada no trabalho dos que não eram livres.

A principal base da economia brasileira foi exatamente o trabalho do negro com a retirada do pau-brasil e mais tarde a exploração da cana-de-açúcar. Por isso, costumamos indagar o seguinte: no Brasil quem são os ricos? E a resposta é: aqueles que, para construir suas riquezas, empregaram o braço escravo, com seu destino de sangue, suor e lágrimas.

Quando houve a Abolição o negro não teve direito à indenização. E como não houve ressarcimento nesse processo, eles têm até hoje uma qualidade de vida muito prejudicada, porque, financeiramente, nada foi herdado do seu trabalho.


* CARLOS SANTANA é Deputado Federal e Presidente da Frente Parlamentar Contra a Discriminação Racial.