
Diagnóstico
de problemas de aprendizagem pode aliviar tormento de quem tem dificuldades
na escola
"Você é burro mesmo, hein?", vocifera a irmã de Gustavo, 8 anos. A jovem de 16 anos irrita-se porque, mais uma vez, tem de levar para casa reclamações sobre o desempenho escolar do irmão caçula. Quando soube das notícias da escola, a mãe do garoto, furiosa, fez o filho engolir o bilhete que a escola havia enviado à família.
A professora de Gustavo, Isabela, se preocupa com as dificuldades que o garoto tem para acompanhar os colegas da segunda série da Escola Municipal de Araraquara, interior de São Paulo. Isabela descreve o quadro do aluno como se ele aparentasse uma "preguiça mórbida", que o faz levar mais de três horas para copiar as anotações da lousa. Apesar disso, a educadora afirma que ele não tem problemas de alfabetização e que consegue entender a matéria. "Ele é inteligente", garante.
Isso não evitou que o moleque fosse surrado - de cinta, pelo pai, e de tamanco, pela mãe - a ponto de passar mal e vomitar. A família não o levou a um hospital, com medo da repercussão, uma vez que o garoto tem várias marcas de surras no corpo. Pelo mesmo motivo, Gustavo assiste às aulas totalmente coberto e não tira a blusa de mangas compridas nem em dias de sol intenso.
Irritados com os problemas de aprendizagem do filho, os pais querem levar o assunto para a delegacia de ensino. "É um absurdo. Eles acham que o menino não aprende por incompetência do professor, da escola. Deveriam levar o caso para uma delegacia de polícia, não para a de ensino", desabafa a professora, que tem preparado aulas e atividades especiais para Gustavo.
Quem dera toda essa história fosse ficção, como os nomes dos envolvidos. Mas não é. Gustavo precisa de ajuda - e não só para ser libertado dos pais. Somente um acompanhamento clínico pode auxiliar na superação das dificuldades em aprender. E na cicatrização de tantas marcas.
Descoberta e convivência - Há vários distúrbios de aprendizado, mas
o diagnóstico é sempre complexo. Podem ser necessários exames clínicos
neurológicos, fisiológicos e motores, por exemplo. Maria Ângela Nico,
coordenadora da Associação Brasileira de Dislexia (ABD), denomina o processo
como uma avaliação de exclusão, levando-se em conta os sintomas. A entidade
realiza testes multidisciplinares para detectar qual é o real problema
do aluno.
As pessoas podem, mesmo sozinhas, encontrar maneiras de lidar com suas dificuldades. João Alberto Ianhez, presidente voluntário da ABD, está com 63 anos e só descobriu que era disléxico aos 43 anos. Desde a infância, ele tinha dificuldade com bolas, jogos e outras brincadeiras. O que não o impedia de tentar. Durante a alfabetização, surgiram empecilhos. "Fui ficando tímido. Só entrava no banheiro quando não tinha ninguém", confessa. Isso sem falar nas gozações e até nos castigos físicos que Ianhez afirma ter sofrido na escola, vítima de professoras "autocráticas", como descreve. Graças a uma profissional recém-formada, o menino foi alfabetizado "com paciência, e soletrando".
Apesar de tudo, Ianhez afirma nunca ter se entregado. Estimulado pelo pai, o garoto lia muito e passou a se destacar no colégio pelas informações que possuía e pelo senso crítico. "Cheguei a acreditar que era burro e que precisava de mais esforço que todos".
Hoje, Ianhez tem uma filha disléxica que, segundo ele, lida bem com essa característica. Ele se diverte ao dizer que "ela inventa palavras para comunicar o que ela quer quando não sabe ou não se lembra". Para ele, o disléxico se destaca por enxergar as coisas de outra forma, por ter um pensamento não-linear. Mesmo assim, adverte: "O problema de auto-estima do disléxico é eterno". A receita? "Tem de se expor."
Modismos - Especialistas, entretanto, afirmam que não pode haver
precipitação no diagnóstico. Tampouco deve-se embarcar em modismos e achar
que o aluno possui alguma dificuldade de aprendizado ao menor sinal, como
adverte Lou de Olivier, psicopedagoga e arteterapeuta. Lou ministra cursos
e palestras, presta atendimento clínico e é também escritora e pesquisadora.
Sua história pessoal levou-a a desenvolver sintomas de dislexia - sofreu
acidentes, teve anoxia (insuficiência ou ausência de oxigênio no cérebro),
derrame e chegou a ficar em estado de coma por duas vezes.
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Tudo
isso motivou a especialista a procurar desvendar a mente humana de diversas
maneiras. Lou começou a fazer teatro, aos 18 anos, para estimular a memória.
Em seu espaço de atendimento, ela trata de distúrbios de aprendizagem
e outros transtornos, com técnicas variadas de psicanálise, psicodrama,
musicoterapia, entre outras.
Em suas pesquisas, Lou esteve sempre na berlinda. Suas descobertas demoraram
a ser aceitas pela comunidade científica. Foi o caso dos estudos sobre
anoxia, que apontaram possíveis repercussões no aprendizado. Métodos pouco
ortodoxos de tratamento levaram-na a ser especialista em "casos perdidos".
Lou acredita que há muita precipitação em cogitar um distúrbio. Ela explica
que vários fatores podem interferir, como a didática que está sendo utilizada
para se ensinar ou uma anemia, por exemplo.
Em um de seus livros, A Escola Produtiva, Lou explica que há diversos
tipos de distúrbios. Segundo ela, é freqüente a confusão entre desordem
ou déficit de atenção (DDA) e transtorno por déficit de atenção e hiperatividade
(TDAH). No primeiro caso, o indivíduo pode, ou não, apresentar hiperatividade.
No segundo, o indivíduo é, necessariamente, hiperativo. Há também diferenças
genéticas e neurológicas entre esses casos.
Mas a lista de dificuldades na aprendizagem não pára por aí. Existe, por
exemplo, a disgrafia (falta de coordenação visual-motora), o distúrbio
de formação e sintaxe (disposição incorreta das palavras no discurso)
e a discalculia (que não é somente mera dificuldade com matemática).
Antes de rotular, no entanto, é preciso descartar causas psicológicas,
como traumas, ou causas do sistema, como a autora denomina, que tratam
de inadequações pedagógicas, metodológicas, estruturais. Só então é possível
partir para as causas orgânicas, que vão desde desnutrição até distúrbios
ocasionados por problemas neurológicos.
Déficit de atenção - A psiquiatra Ana Beatriz B. Silva ajuda a
acabar com alguns mitos sobre problemas de aprendizagem em seu livro Mentes
Inquietas. A obra trata basicamente do déficit de atenção, mas é quase
impossível o leitor não reconhecer traços característicos desse distúrbio
em si ou em outras pessoas.
Ana Beatriz divulga em seu livro a ocorrência simultânea de transtornos
de aprendizagem e problemas psíquicos. Isso porque o desconforto primário
pode afetar tão profundamente a vida do aluno que outras síndromes somam-se
à anterior. O pequeno Gustavo, de Araraquara (SP), provavelmente se encaixa
nesse caso. A professora dele, Isabela, acredita que o garoto apresenta
dificuldades na escola por causa da violência doméstica à qual ele é submetido
diariamente. "Antes, ele era agressivo com os coleguinhas. Hoje, é tímido
e retraído, quase não fala com ninguém", afirma ela.
O apelo das drogas - Recorrer às drogas é um caminho não raro para
portadores dessas dificuldades, como atestam todos os especialistas consultados.
Para efeito de ilustração, de acordo com dados disponíveis no livro de
Ana, só nos EUA, estima-se a existência de 10 a 15 milhões de pessoas
com déficit de atenção. Desse universo, entre 40% e 50% fariam uso de
drogas.
Isso não quer dizer que a toxicomania esteja sempre relacionada a esses
distúrbios. Pode ocorrer, porém, um processo de automedicação, pois as
drogas mostram-se aparentemente eficazes para amenizar sintomas comuns
nas síndromes abordadas, como ansiedade, apatia, frustração e dificuldade
de concentração ou de relaxamento. Com o tempo, a tendência é que os supostos
benefícios desapareçam diante dos empecilhos sociais da adicção química
ou psicológica. Ana Beatriz comenta, entretanto, que outros comportamentos
compulsivos podem se desenvolver em relação à comida, ao sexo ou às compras,
com semelhante poder destrutivo.
A psicopedagoga Sara Paín escruta os mecanismos da mente diante do conhecimento
em uma de suas obras sobre o assunto, A Função da Ignorância. A aprendizagem
é tratada pela autora como um distúrbio em si, pois muda conceitos existentes.
A ignorância, portanto, tem um papel importante para o indivíduo. Ela
o resguarda de algo que precisa ser trabalhado. "Há aprendizagens que
são assimiladas pelo conhecimento do sujeito sem alterar o sistema, mas
existem outras que entram em contradição com esse conhecimento, provocando
uma reorganização do adquirido anteriormente. A aprendizagem, enquanto
processo de conhecimento, não somente é gerada pelo distúrbio, mas também
o engendra", explica Sara.
Nesse panorama, a autora faz uma distinção muito importante: "As perturbações
da aprendizagem não podem, pois, ser consideradas como erros, pois tratam-se
de perturbações que se produzem durante a aquisição do conhecimento e
não somente nos mecanismos de conservação e de disponibilização do saber
já adquirido."
Não é suficiente detectar a dor do indivíduo. Segundo a autora coloca
em seu livro, é necessário buscar opções. "Para ajudar a criança a sobrepujar
sua perturbação, não basta denunciar o papel dessa perturbação como defesa,
é necessário restituir ao conhecimento e à atividade cognitiva a alegria
que foi pervertida sob a forma de ignorância."
Obs.: Matéria cedida pela Revista Educação
Site: www.revistaeducacao.com.br
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