Nossa criança chega à escola, já é uma criança crescida. Corre, brinca, fala muito, compreende tudo o que lhe dizem, conversa como um adulto! Adora historinhas, quer sempre que lhe contemos “outra vez”, e quando alguma passagem lhe é familiar é capaz de reproduzi-la com perfeição, até com as mesmas palavras. Mas por que será que a professora falou que ela não está acompanhando bem a escola?

Muitas crianças, a despeito de apresentarem um perfil de desenvolvimento adequado, ao iniciar a alfabetização, mostram dificuldades no aprendizado desta nova linguagem. Ao contrário do que muita gente pensa, a escrita não é uma representação fidedigna da fala. Para aprender o mistério das letras, a criança precisa perceber que aquele som contínuo que ela ouve é representado, na escrita, por palavras separadas por espaços em branco, com vírgula e ponto final, e que as palavras são compostas de pequenos pedacinhos – os fonemas. Pedacinhos estes que, em sua maioria, não são pronunciados isoladamente. Já reparou que nós não falamos palavras separadas, que falamos uma melodia, marcada por entonações, muitas vezes colocando duas ou três palavras num mesmo encadeamento, como: azantigas casazamarelas (as antigas casas amarelas)?

E o que falar, então, dos grafemas que representam os sons da fala? Se perguntarmos a uma criança pequena quantos sons tem a palavra menino, ela pode nos responder: três. A unidade silábica é muito forte para nós, até mesmo depois de adquirirmos a escrita, precisamos pensar bem para dar este tipo de resposta: quantos sons tem a palavra mesa, a palavra cadeira e a palavra chuva? E quantas letras têm estas mesmas palavras? Se os pequenos sons das palavras são os fonemas, mesa tem quatro fonemas, cadeira tem seis fonemas, pois raramente alguém fala o /i/, e chuva tem quatros fonemas. Respectivamente, estas palavras têm quatro, sete e cinco letras. E quantos grafemas? Respectivamente quatro, sete e quatro grafemas.

A escrita representa, por meio de letras, os fonemas. Mas nem sempre a um fonema corresponde uma única letra, por exemplo a palavra chuva. E ainda, como vimos no exemplo da palavra cadeira, às vezes a palavra escrita tem mais letras do que os sons que pronunciamos. É difícil para uma criança tomar consciência do fonema. Quando falamos uma palavra como mesa, falamos uma síntese dos fonemas /m/+/e/+/z/+/a/. Ninguém fala fonemas separadamente (exceto quando dizemos, por exemplo, é, o etc.), a unidade mais reconhecível é a sílaba. Não é à toa que nas hipóteses que a criança faz sobre a escrita, antes de chegar à fase alfabética, ela se utiliza de representação da sílaba.

Na verdade, depois que aprendemos a ler e escrever, deixamos de lado estes questionamentos. Afinal, nos apropriamos de uma nova linguagem. Não nos damos mais conta dos passos que demos para construir esse conhecimento, nem mesmo das vantagens que essa linguagem nos trouxe sobre nossa maneira de pensar ou de adquirir novos conhecimentos. A escrita possibilita a utilização de outros esquemas mentais além daqueles utilizados pela linguagem oral. Se você refletir, poderá ver muitas letras e palavras escritas saltando-lhe à mente quando você deseja recuperar uma informação.

Se uma criança lê bem, adquire novas palavras, por isso lê mais e mais rapidamente e, por conseguinte, pode entender melhor o que lê. Mas, por exemplo, se para ela é difícil saber as correspondências grafema-fonema, o processo de decodificação é lento, custoso, requer muito esforço e torna-se desagradável, comprometendo todo o processo de compreensão do texto e tornando, portanto, a leitura desestimulante. Por ler menos, essa criança adquire menos palavras no seu léxico ortográfico e apresenta menos velocidade de leitura, o que pode representar um atraso com relação a seus colegas de classe. Assim, pequenas dificuldades podem gerar grandes obstáculos.

As dificuldades das crianças no início da aprendizagem da linguagem escrita podem ser inúmeras, desde aquelas relacionadas às capacidades individuais, como as ligadas ao método de alfabetização ou ao meio ambiente (social, familiar, psicológico). Aprender a ler e escrever é um desafio que mexe com as estruturas emocionais e cognitivas da criança. É bastante comum vermos nossa criança com ataques inexplicáveis de mau humor. O esforço que faz para compreender o mundo e sua luta por um crescimento contínuo não devem ser subestimados por aqueles que cuidam e convivem com ela.

No processo de alfabetização, a criança tem um longo caminho a percorrer. Tomar consciência do fonema, conhecer as correspondências letra-som, dominar as regras que norteiam estas correspondências para a leitura e para a escrita são só o início dessa aventura que é o mundo da escrita. No entanto, o perfeito domínio desses primeiros passos garante, ao longo da estrada, uma vantagem na aquisição de novas palavras e novos contextos e conduz ao sucesso quanto ao principal objetivo da leitura: a compreensão. A direção para encontrar-se o prazer de ler estará assim colocada.

Dalva Maria Alves Godoy é fonoaudióloga,
mestre e doutoranda em Lingüística na
Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). E-mail: dalva@cce.ufsc.br
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