Professor trabalha a inclusão sociocultural de jovens carentes

Por Sandra Martins

Circo, palco de sonhos realizáveis, de alegrias duradouras e de tristezas efêmeras. Porque não usar esta mágica como aliada em um processo de inclusão sociocultural de jovens carentes? Com esta proposta nasce o projeto “O Circo no Mundo”, que utiliza a linguagem circense como ferramenta na construção da cidadania. O trabalho, coordenado pelo professor de Educação Física Sérgio Henrique, tem como objeto crianças oriundas de famílias de baixa renda da comunidade do Cantagalo, em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro.

Sob a chancela do Grupo Cultural Afro Reggae e contando com parcerias da Fundação Ford, do Cirque du Soleil e da Secretaria Municipal de Educação, o projeto é centrado na crença de que, havendo melhora no capital cultural e social das crianças, a informação adquirida poderá ampliar suas perspectivas de vida socioeconômica e financeira. “O circo é um campo democrático onde todas as pessoas, independente de sua condição física, financeira, de gênero ou de raça, têm o seu espaço e a sua vez”, disse Sérgio Henrique.

Através de jogos sensitivos e motivadores, o aluno aprende a ter confiança em si mesmo e, conseqüentemente, vai superando suas limitações tanto físicas como psicológicas. Para isso, segundo Henrique, buscamos aliar o desenvolvimento da psicomotricidade ao afetivo e ao cognitivo. “Não basta trabalharmos somente o aspecto físico, temos de descobrir e trabalhar todas as potencialidades destas crianças, respeitando suas limitações e complexidades”.

A tarefa é árdua, confessa o professor que coordena o projeto desde 1997. Entre os cerca de 200 jovens com idades variando entre sete e 17 anos, o professor lembra que alguns se profissionalizaram, como o caso de um ex-aluno que atua em um circo nos Estados Unidos.

Um dos requisitos básicos para quem vai atuar no mundo mágico do circo é a disciplina. Tida, por vezes, como uma grande vilã, depois de vencidas as barreiras iniciais da resistência, torna-se uma grande aliada na conquista da valorização da auto-estima. O condicionamento físico almejado nos cansativos exercícios, que visam a uma maior flexibilidade muscular, objetiva também permitir que o aluno sinta-se menos fragilizado e mais seguro diante de situações conflitantes e que possa se relacionar melhor com os problemas do dia-a-dia. “Em vez de darmos limites o tempo todo para eles, conforme se preconiza atualmente, fazemos justamente o contrário, os ensinamos a superar seus limites, conscientizando-os a ter responsabilidade com as conquistas alcançadas”.

Segundo Henrique, o projeto é calcado nos princípios sociais do relacionamento e da convivência, e por conta disto já passaram por diversos problemas. Em primeiro lugar, porque os jovens, em sua maioria pertencentes à comunidade do Cantagalo, que, a exemplo do “asfalto”, também tem suas regras de convivência social, reproduzem algumas situações as quais estão acostumados, ocorrendo, então, um choque cultural. Como exemplo, ele cita a forma com que os verbos são colocados sempre no imperativo. As crianças são acostumadas e condicionadas a serem ordenadas e, com o tempo, a ordenar. Na tentativa de controlar estes choques, o professor, respeitando as individualidades, dá um tratamento desigual às desigualdades. “Também na favela existem diferenças de classes, há as crianças da elite e as que são paupérrimas, ou seja, elas são excluídas duas vezes”.

Apesar destas dificuldades, o trabalho tem sido muito bem aceito, não só pelos educadores formais, como pelos próprios pais dos alunos, que acabam, inclusive, sendo influenciados pelas informações adquiridas pelos seus filhos, a ponto de estar sendo criada uma escola de pais, que aos moldes do projeto, da mesma forma que um aluno se desenvolve com outro aluno, um pai pode se desenvolver com outro pai.

“Percebemos que com a quantidade de atividades e informações que as crianças estão recebendo, elas estão desenvolvendo o que chamamos de currículo oculto, e que está fazendo diferença nas notas na escola”, afirmou Henrique, salientando que, segundo informações dos professores, o rendimento escolar deu um salto qualitativo, uma vez que os alunos têm obtido notas melhores, estão se mostrando mais atentos, mais disciplinados, mais dispostos e interessados.

Procurando fazer a junção de todas as linhas pedagógicas, principalmente as de Paulo Freire e Freinet, Henrique observou que a Educação Física hoje está muito ligada à questão social e que, a seu ver, ela se sustentará neste viés. “A história mostra que, quando a Educação Física era voltada para o desporto, veio a Copa de 70 e as escolas passaram a trabalhar os esportes competitivos. No entanto, vimos que a coisa não rendeu. Por isso acredito que a Educação Física sempre vai estar contextualizada dentro dos valores socioculturais e, aí, entram os pensadores que trabalharam o tempo todo dentro destas questões sociais, argumentou o professor.

Trabalhar as próprias dificuldades em grupo mirando um objetivo único, mas atendendo às peculiaridades internas, não é das tarefas mais fáceis. É um trabalho que exige muita perseverança. Segundo Sérgio Henrique, esta dinâmica só é percebida por quem está envolvido no processo, pois as pessoas só vêem o resultado e não o quanto foi investido nele. A mesma dificuldade do reconhecimento do esforço alheio se dá quando o treinado vem das camadas excluídas da sociedade. “A inclusão deste indivíduo deve ser calcada nas conceituações dos pensadores. Daí a importância dada à limpeza e à montagem dos equipamentos que visa a fazer com que o jovem transfira para sua vida pessoal os conceitos apreendidos na sua vida desportiva. Esta conscientização amplia o limite destes jovens, aumentando sua autonomia, a ponto de, atualmente, eu somente dar orientações sobre determinadas situações. Esta autonomia é fruto do ganho pessoal e coletivo, pois, eles aprendem muito com outros alunos”, disse.

Metodologias - Dos 200 ex-alunos do projeto, inúmeros tiveram dificuldades com a leitura ou não sabiam sequer ler. Por isso, uma das metodologias mais utilizadas tem sido a de Paulo Freire. Um exemplo é o trabalho de produção de textos com acompanhamento escolar, calcados na história do circo e em algumas instituições que tenham um trabalho semelhante ao do Afro Reggae. Os textos são lidos pelos jovens, e os que não conseguem acompanhá-los vão fazendo-o lentamente, aprendendo a ler mais pela curiosidade e pela vontade de poder participar integralmente de todos os momentos do grupo. Destas leituras, são pinçadas palavras problematizadoras – violência, praia, maxismo, sexualidade, o elevador que faz parte da vida deles, à medida que são necessários para atingir os pontos mais altos do morro – que serão dispostas em grupos que facilitarão o exercício da leitura.

Todas estas atividades são registradas em uma agenda que cada aluno recebe e na qual ele vai criando uma história individual, porém inserida em um contexto sociocultural, em que o cultural fica por conta do circo – dinâmica esta que, de certa forma, lembra as idéias de Freinet. Outra técnica que o projeto utiliza deste pensador trata dos passeios que visam a valorizar o cotidiano das crianças e estar no meio em que eles convivem. “Quando eles saem para fazer os passeios, como aconteceu no El Cirque, que está na Praça XI, eles têm oportunidade de estudar as suas deficiências, basicamente de cunho artístico. Depois, voltam para o tablado, exercitam e retornam ao circo para ver de novo. Alguns chamam de feedback, mas fazemos esta via de mão dupla para poder melhorar a qualidade de informação deles, afinal isso é cultura que eles vão adquirindo e, segundo Rubem Alves, o limite do homem está no limite da sua linguagem.

Ídolos - Para Sérgio Henrique é necessária a existência de pseudos ou de pequenos ídolos que sirvam de referência para os mais novos que podem ser alunos mais adiantados ou mesmo artistas circenses consagrados. O objetivo destas ações é a criação de duas responsabilidades: a do ídolo não decepcionar os seus fãs e a dos mais jovens se espelharem nos mais velhos e tentarem galgar os degraus da fama e das luzes da ribalta.

“Quando eles vêem matérias enaltecendo as aptidões circenses de alguns dos colegas estampadas em um jornal, os alunos fazem uma verdadeira divulgação, sonhando com a perspectiva de um dia conseguirem chegar lá”, disse. Por conta da troca de experiências, o Afro Reggae cria algumas oportunidades de apresentação em shows e teatros, como o Carlos Gomes, o Glória, o Teatro da Uerj e outras no exterior – França, Argentina, Chile e Canadá – que raramente os alunos teriam, caso não estivessem engajados neste trabalho. “Nessa hora, criamos uma transdisciplinaridade, pois, se considerarmos cada técnica circense como uma matéria, teremos uma interdisciplinaridade, e, ao chamarmos outras ciências para estar compondo nosso trabalho, acreditamos que isto acaba se tornando uma transdisciplinaridade”(sic), colocou.

A sexualidade também é tratada com atenção. “Se as meninas estão entrando na fase da puberdade, na qual o furor da sexualidade começa a despontar, e percebemos que alguma coisa está fora do lugar – como uma blusa que não está adequada àquele ambiente –, conversamos com elas a respeito do assunto. Então, a educação sexual entra como uma questão que não tem de esperar o momento certo para ser discutida. Para isso, contamos com o apoio de profissionais da área de saúde, que as auxiliam conforme a necessidade”, disse.

Como em todo trabalho social, as desistências causam dor para os dois lados. Neste projeto, Henrique apontou algumas razões para explicar a evasão de inúmeros alunos no meio do aprendizado: disciplina, cansaço e entrada no mercado de trabalho. Para ele, o item disciplina é o mais penoso, porque no morro a hierarquia tem outra estruturação. Na comunidade, os verbos são usados no imperativo, os moradores são ordenados a fazer alguma coisa e, às vezes, reproduzem algumas situações, acarretando um choque de culturas.

Atividades - A turma de 50 alunos é dividida em dois grupos, novamente divididos em subgrupos, que se revezam, por um tempo determinado, nos diversos equipamentos, como se fossem estações de acrobacias, com a lona, malabarismo, trapézios e exercícios de solo. Os artistas profissionais preparam os alunos mais experientes, criando-se uma monitoria de jovens instrutores, que repassarão as técnicas para os mais jovens.

Os aparelhos aéreos têm uma estrutura que desafia e atrai os jovens para a prática de exercícios acrobáticos. Neste aspecto, Henrique lembra a contribuição de Piaget, em que a jovem entra na arena e vê os aparelhos e os tecidos (tiras penduradas no teto) e pressente que tudo aquilo só servirá para subir. O tecido, o trapézio, a lira e a corda indiana são equipamentos normalmente apreciados pelas meninas, que se identificam devido ao fato de os exercícios denotarem beleza e flexibilidade. Apesar de aparentemente não exigirem força, os exercícios aéreos requerem muito mais força do que os exercícios de solo. Entretanto, as crianças fazem um rodízio entre as várias estações até que se identifiquem mais com uma ou outra atividade.

É neste aspecto que o professor Sérgio Henrique afirma ser o circo um espaço democrático. Uma criança magra pode não ter forças para o trapézio, mas pode se dar muito bem no equilibrismo e no malabarismo. Outra criança pode não ter pernas longas o suficiente para treinar no monociclo e decidir atuar nos exercícios aéreos.

Para comprovar esta afirmação, Henrique lembra o caso de um garoto obeso, de 14 anos, com quase 100 quilos que queria treinar com as pernas de pau. Após muita insistência e cercando-se de inúmeros cuidados, o professor liberou o treinamento. Qual não foi a surpresa do instrutor, que, após algum tempo treinando, o menino conseguiu romper a barreira preconceituosa imposta pelo professor, e não só andou como tornou-se o melhor perna de pau e palhaço que passou pela trupe.

Projeto Circo do Mundo
Coordenador de Circo:
Prof. Sérgio Henrique
Tel.: (0xx21) 2220-7804 / 9798-2161