Carlos da Silva, 16 anos, estudante da 7.ª série de uma escola pública do ensino supletivo, um dos três filhos de José e Maria da Silva, casal de nordestinos, vindos para São Paulo, há 6 anos, em busca de emprego. José, ex-trabalhador da lavoura, agora diarista da construção civil, cuida da manutenção da família, com dificuldade, somando seus ganhos com os de sua mulher, Maria, empregada doméstica que divide seu tempo entre esse trabalho e os afazeres de sua casa – um barraco tipo meia água de três cômodos –, onde mora juntamente com o marido, Joana e Abigail, outras filhas do casal, e onde também morava Carlos. Morava... até ontem. Hoje, seu corpo encontra-se no IML, aguardando a liberação para o sepultamento. Ao lado do corpo de Carlos encontra-se outro jovem, da mesma idade. Gustavo Rosa, filho de imigrantes Italianos e prósperos empresários da indústria alimentícia. Gustavo já terminara o 2.º Grau em Técnico de Processamento de Dados e fazia, até então, o curso pré-vestibular. Pensava em cursar Engenharia Eletrônica na USP.

Ambos foram fuzilados quando deixavam um local de vendas de drogas. O tiroteio os pegara desprevenidos. Tanto Carlos como Gustavo traziam em seus bolsos uma pequena quantidade de drogas.

As drogas têm servido, em nossa contemporaneidade, como substâncias usadas para produzir “horizontes”. Por isso, “horizontes nos bolsos”, lugar onde comumente, milhares e milhões de pessoas transportam suas “doses diárias” de êxtase, de “sonhos”, de ilusão, de negação de si mesmo.

Esta epidemia que se alastrou no mundo, principalmente após a metade do século XX, adentra o III milênio com furor cada vez mais crescente. Não pede licença. Chega invadindo lares, destruindo famílias, alcançando crianças, jovens e adultos, infectando as escolas, povoando os becos, visitando os apartamentos, operando nos escritórios, divertindo-se nas festas, nos bares... Ela não discrimina. Serve-se a todos, a quem queira. Pobres, ricos, brancos, negros, amarelos, empregados, desempregados, cultos, incultos. Destina-se exclusivamente a seres racionais, a um espécime que está sempre em busca de mais alguma coisa. Muitos a consomem alegando motivos econômicos e culturais. Faltam-lhes empregos, suas famílias são paupérrimas, não têm expectativa de “sucesso” na vida, portanto, precisam, diariamente, de doses cada vez maiores, a fim de enxergarem seus “horizontes” além de suas realidades.

Outros falam de viagens, diferentes viagens no campo da alucinação. A vida que levam já não os satisfazem, mesmo não tendo problemas financeiros ou ainda filhos de famílias ricas, muitas vezes profissionais bem-sucedidos, prósperos, “estabilizados”. Seus “horizontes” estão cheios de vazio, querem realçá-los com algo mais. Constantemente, precisam “dela”.

“Horizontes” que carregam nos bolsos e que “realçam” vidas que são carregadas. Algumas para centros de recuperação, outras para clínicas especializadas, outras para hospitais, outras para a prisão, outras para o necrotério e, finalmente, para o sepulcro. É o fim. É o fim para milhares de Carlos, Gustavos, Josés, Pedros, Henriques, que levam com eles pedaços dos corações de seus pais, parentes, amigos, de todos nós... É o fim dos sonhos, dos horizontes.

A história de Carlos e Gustavo, embora fictícia, é a realidade que presenciamos, cotidianamente, de muitos que constróem seus sonhos com base nos “horizontes de bolsos”. É também a realidade de uma sociedade enferma, muitas vezes, omissa, mostrando, em situações como esta, que vários de seus membros sofrem da Síndrome de Pilatos – “lavo minhas mãos”. Afinal, não é comigo, nem com meus filhos, nem com meus alunos, nem com minha esposa, meu namorado, meu marido.

Na verdade, todos nós vivemos em meio a esta contaminação. Muitos já vacinados e por isto sem sofrer as conseqüências diretas deste mal. Contudo, ainda estamos vulneráveis aos seus efeitos “colaterais” que nos rodeiam – o crime, a violência, a bala perdida, a ação despreparada da repressão e a indignação ao vermos crianças, jovens e cidadãos serem ceifados pelo resultado da ação destrutiva deste flagelo mundial. A escola com sua ação educativa e a família com sua ação fraterna e referencial são os organismos principais de combate e resistência a esta deformação sociocultural. A eles devemos somar cada um de nós, individual ou organicamente, e desenvolver salvaguardas e alertas para os incautos, mostrando-lhes que os horizontes são sonhos possíveis quando vêm do coração e da mente sadia. No entanto, provindo dos bolsos são pesadelos. É como o “mel” quando entra pela boca, pelo “nariz” ou pela “veia” e que logo se transforma em fel ao descer as entranhas da alma.

Ednaldo Carvalho