Nas últimas duas décadas, as reflexões e discussões sobre a alfabetização tomaram um novo impulso e resultaram num considerável volume de trabalhos acadêmicos e, conseqüentemente, em novas propostas curriculares que se apresentaram através de programas oficiais, livros didáticos, debates mais ou menos públicos etc. Com isso, novos termos para falar sobre o ensino/aprendizagem da escrita foram aparecendo, às vezes, mais confundindo do que esclarecendo as novas orientações.

Sem a intenção de apresentar o paradigma teórico em que cada tema se ambienta, citamos abaixo quatro deles apenas para ilustrar um ou outro diferencial que o uso dos mesmos pode implicar.

O termo aquisição da linguagem traz consigo a idéia de que linguagem se adquire, e aqui o poder “aquisitivo” seria de base biológica, ou seja, de maturação cognitiva. Já o termo alfabetização carrega um valor histórico de práticas mais tradicionais de ensino, nas quais o que se enfoca é a aprendizagem de habilidades para a leitura, no processo de escolarização. Ao mesmo tempo, esse termo torna-se simpático quando usado para se aproximar de alunos e professores, já que é a palavra mais freqüentemente usada por leigos ou por profissionais que a tomam genericamente.

Quando os pressupostos estão ancorados na teoria socioconstrutivista, adota-se a expressão construção da escrita, sendo que, neste caso, o diferencial mais evidente é a idéia de construção e processo. Por fim, a palavra letramento, mais nova no panorama teórico, traz mais alguns elementos, tomados como inerentes ao processo de ensino/aprendizagem da leitura e da escrita. Esses elementos estariam coligando, segundo Roxane Rojo (lingüista PUC/SP), a “adoção de pressupostos teóricos (sociológicos, etnográficos), nos quais a interação social tem um peso decisivo na construção da escrita pela criança”.

De acordo com Magda Soares (professora emérita da Faculdade de Educação da UFMG), a palavra letramento surgiu da necessidade de se nomear algo novo no campo da Educação. Inicialmente, ela foi aparecendo nos discursos teóricos dos especialistas e hoje já figura em títulos de livros técnicos, em revistas especializadas e em conversas entre educadores.

Mas o que de novo surgiu para que houvesse necessidade de um novo termo? “Na verdade, a novidade está mais no nível da compreensão do que num fato; compreensão de que não basta apenas conhecer o sistema de funcionamento do código para considerar que se domina a comunicação escrita, ou seja, não basta dominar a tecnologia da escrita, é preciso reconhecer a escrita como parte de uma manifestação sociocultural e que sua aprendizagem altera as condições sociais, políticas e psicológicas do sujeito e da sociedade enquanto usuária desse tipo de linguagem.” – afirma Cláudia Vartanian, autora de Viver e Aprender Alfabetização.

Até pouco tempo, segundo Soares, os índices de analfabetismo eram tão alarmantes que a prioridade da política educacional era tornar acessível ao maior número de pessoas o recurso da escrita enquanto técnica. Hoje, embora não solucionado esse problema, as preocupações se voltam também para o ensino/aprendizagem do uso social da escrita. Com isso, o interesse não está apenas centrado no número de analfabetos e alfabetizados (que no limite sabem assinar o próprio nome), mas em discutir e transformar as práticas pedagógicas de forma que se possa alcançar melhores níveis de letramento, pois assim estaremos avançando no nível de nosso desenvolvimento e civilidade.

De uma forma ou de outra, essas preocupações e transformações vêm chegando às salas de aulas e convocando os professores para uma reflexão sobre a prática e material pedagógico que vêm adotando.

Sobre o processo ensino/aprendizagem, algumas diretrizes vêm favorecendo um grande avanço na possibilidade de estarmos trabalhando para contribuir na formação de sujeitos ativos no exercício de sua cidadania. Essas diretrizes dizem respeito ao aluno enquanto sujeito ativo de sua aprendizagem, ao professor como articulador das relações possíveis entre os conhecimentos, ao próprio conhecimento como construção contínua determinada pela quantidade e qualidade das interações sociais.

Quanto ao material didático, a competitividade no mercado tem feito ampliar o número de ofertas de livros didáticos, por exemplo, e naturalmente, tem possibilitado um movimento de escolha entre bons títulos. Contudo, é preciso estar atento para alguns critérios de suma importância quando se objetiva um trabalho consistente e comprometido com o real desenvolvimento do aluno.

Em se tratando de um livro de “alfabetização”, um dos principais itens é o critério estabelecido para a seleção de textos e o tipo de abordagem que se propõe aos alunos através dos exercícios. Pseudotextos, como os tradicionais cartilhescos “ Ivo viu a uva” ou “A bola de Bia”, criados apenas para introduzir sílabas e famílias silábicas, em nada contribuirão na formação de usuários da língua. Além disso, aqueles que pressupõem que, através do trabalho exaustivo com narrativas e com questões que visam apenas à localização de informações, nessas narrativas poder-se-ão formar leitores e escritores com condições de compreender o mundo, equivocam-se e tornam enfadonho o trabalho escolar. A diversidade de gêneros textuais, a preocupação com a qualidade literária, com a apresentação de autores consagrados, com a variação de estratégias e recursos de exploração textual e tantos outros critérios poderiam ser aqui citados, mas, em poucas palavras, o que importa dizer é que ao “alfabetizar” é preciso ter em mente a idéia de letrar.

*Materia cedida pela Revista Viver e Aprender - edição especial comemorativa aos 84 anos da Editora Saraiva.