Dia Mundial da Água: e nós, os mais bem servidos?


A Idade Média, na sua visão centrada na questão religiosa, via as águas como o “sangue da terra”, e olha que não se tinha naquele período a ideia tão clara de que simplesmente três quartos do planeta é composto desse elemento. Desde a Antiguidade, a água sempre ocupou um lugar místico em todas as culturas e religiões, haja vista a quantidade de narrativas falando de dilúvios.

No surgimento da filosofia, no século VI a.C., uma das primeiras investigações sobre a natureza ocorreu a partir das reflexões de Tales de Mileto, que estabeleceu a ideia de que o elemento original de todas as coisas era a água, por um lado porque entendeu que dela poderiam originar-se outros elementos (a terra por condensação e o ar por rarefação), por outro porque nela se encerrava a noção de “liquidez primeira do universo”, o que no seu entendimento remetia aos atributos básicos dos deuses, de onde tudo seria proveniente.

Além disso, não há povo nos tempos recuados que não tenha tido rituais que passavam de alguma forma pelo simbolismo da água. E mesmo no Renascimento, quando os primeiros raios da ideia de ciência como hegemônica em relação à religião aparecem, encontramos a figura do gênio Leonardo da Vinci, um apaixonado pelo precioso líquido, que desenhou e cujos movimentos procurou reproduzir em todas as suas nuances e efeitos.

A modernidade aumentou muito o nosso conhecimento científico e permitiu que as águas – sem perderem o significado místico-filosófico de antes – fossem compreendidas como parte de um ciclo absolutamente sofisticado, fundamental para todo o planeta. Mas essas descobertas que possibilitaram entender a excelência desse elemento também apresentam o seu lado preocupante e desafiador.

Em destaque o fato de não mais que 3% da água no planeta ser potável (isto é, águas doces, mas só um terço disso está disponível, pois o restante se encontra em geleiras, na atmosfera ou em lençóis freáticos), própria para ser consumida por uma humanidade que passou de 1 bilhão de pessoas em 1800 para os 7 bilhões atuais. O que faz do uso absolutamente descuidado que os seres humanos têm feito dela uma espécie de bomba-relógio para o futuro.

Como se sabe, o Brasil é o país mais bem servido de água em todo o planeta. O que, porém, nos devia tranquilizar e orgulhar tem na verdade se constatado como um grande problema. Primeiro, porque, apesar de possuir alguns dos sistemas fluviais mais abundantes, a situação geral dos rios no país é alarmante. Em todos os estados da federação há estudos demonstrando como a poluição e a má convivência entre progresso material e natureza tem posto em perigo a continuidade do abastecimento de todas as espécies.

Aqui nesse texto, onde buscamos chamar a atenção para a preciosidade que (ainda) temos em mãos, nem vamos entrar nos exemplos mais agressivos de má gestão das águas, já que são fartamente abordados nos meios de comunicação, principalmente após tragédias ambientais como as de Mariana e Brumadinho ou a morte lenta que está sendo imposta ao “rio da integração nacional”, o Velho Chico dos sertões brasileiros.

Vamos ficar com a lembrança do que pode e deve ser preservado, como a exuberante ciranda dos rios da Amazônia, sustentando a maior floresta do planeta, tanto por baixo, garantindo a sobrevivência de milhares de espécies, quanto por cima, mantendo gigantescos rios voadores, que cruzam o continente sul-americano, influenciando o regime das chuvas e se relacionando até com outros ecossistemas espalhados pelo globo.

Também não custa lembrar dos dois belos aquíferos de que nossa terra é servida, o Guarani (que homenageia os primeiros habitantes da região, que aliás estão entre os maiores preservadores de água do país), com seus 1,2 milhão de km2, que também abrange o subsolo dos nossos vizinhos do Cone Sul, e o Alter do Chão, que se localiza no norte do país, com quase o dobro do volume de água, segundo descobertas dos últimos anos.

Duas preciosidades, verdadeiras minas de prosperidade que precisam ficar protegidas como patrimônio brasileiro, a serem desfrutadas por todos e principalmente ficando distantes daqueles projetos de exploração que se conduzem unicamente pela sede do enriquecimento. Que essas sejam as lembranças que permaneçam entre nós em mais um Dia Mundial da Água!

Leia também: “A poética da natureza ou como tratar com leveza o drama ambiental do século XXI”


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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