“Escrevivências” que inspiram

Projeto realizado entre alunos da EJA estimula e integra a troca de saberes


Iniciado em pleno ano de pandemia, o projeto Minhas Escrevivências: leituras de mundo e leitura das palavras, realizado entre as três turmas de alfabetização, da Escola Municipal Alcide de Gasperi, teve como um dos objetivos abranger o uso de ferramentas digitais, cultura e educação como meio de estímulo ao desenvolvimento do processo de aprendizagem, a fim de incentivar a continuidade da alfabetização, leitura e escrita no cenário adverso que a pandemia trouxe aos cidadãos.

De acordo com a idealizadora do projeto, professora Gisele Ferreira da Silva, alinhado a toda a dificuldade inerente ao sistema de aprendizado em todas as modalidades, sobretudo na adulta, construir ou ajustar o contexto didático pedagógico em cenário de crise sanitária ainda continua sendo uma grande inquietação para toda a comunidade escolar. Todavia, com a chegada da pandemia, a tecnologia, mesmo com toda dificuldade, ganhou lugar de destaque e acabou se tornando uma luz no fim do túnel em alternativa aos assombros que recaíram sobre o novo ensino.

 

Aplicativos como apoio no ensino e aprendizagem

Em meio a tantas inquietações e perguntas, vária delas sem respostas, os muitos aplicativos ofertados, sobretudo no mercado educacional, tornaram-se um potente aliado das escolas e dos professores na busca por um ensino mais qualitativo e uma mediação mais eficaz na troca de saberes. Iniciado de forma remota, o projeto Escrevivências teve a sua primeira configuração através do aplicativo WhatsApp, porém, segundo a professora Gisele, não se destinou estritamente ao envio de atividades, “mas sim como um meio de mediação para o elo mais próximo comigo e com a escola”, esclarece a professora.

Por estarem distantes fisicamente do ambiente escolar, era necessário provocar a conversação entre os alunos. Foi então que a docente começou a estimular a fala dos estudantes utilizando o aplicativo, uma vez que para aquele grupo a plataforma específica de estudos era muito complexa. “Até então, as interações ocorriam mais através do material didático retirado na escola”, ressalta.

 

As muitas inquietações do retorno presencial

Segundo Gisele, no retorno presencial, alunos que já a conheciam brevemente ou mesmo aqueles que não tinha tido oportunidade de trabalhar com ela demonstravam estar sentindo falta da escola e dos estudos. Com isso as conversações foram ganhando uma roupagem mais didática com perguntas disparadoras, que estimulavam as narrativas, como, por exemplo: quem os incentivava para os estudos? Por que decidiram voltar a estudar? Como estavam conseguindo prosseguir?, entre outras.

Por conta da ausência do domínio da leitura e da escrita, todas as interações com os alunos foram aguçadas através de áudios, a fim de que eles se sentissem mais à vontade para participar das aulas. Ainda dentro dessa nova etapa, a professora aproveitou também para trabalhar a parte imagética como pressuposto para a apreciação de outros temas que fizessem sentido para cada um deles.

 

Metodologias ativas

Por ser um desafio na educação, a volta ao modelo presencial ou híbrido e suas novas metodologias precisaram ser repensadas e outras adaptadas para aquele novo momento, a fim de que as trilhas de aprendizado presencial se intensificassem. “Fizemos muitas dinâmicas que envolveram textos de Paulo Freire, Conceição Evaristo, músicas, dobraduras, poesias como as de Cecília Meireles, pintura etc. Tudo como estimulador das diferentes linguagens e sempre com alguma produção escrita individual ou coletivamente sobre seus processos e objetivos de estudos”, enfatiza Gisele lembrando que, dentro desse novo caminhar, cada aluno construiu um caderno pessoal de sua trajetória com as atividades, os contos, as narrativas, dobraduras, desenhos utilizados durante todo o percurso.

Ao ser questionada como administrou essa transição híbrida do remoto à volta do presencial, a professora disse ter sido uma grande etapa de reestruturação, pois, conforme os alunos compareciam à escola, iam sendo incentivados a entrar no grupo, visando o uso da ferramenta, contemplando dessa forma o ensino híbrido solicitado, bem como o incentivo ao uso do recurso tecnológico como uma plataforma de apoio.

 

Conceição Evaristo: um expoente da literatura

Mesmo respondendo bem às metodologias e atividades propostas, todos tiveram que superar, vencer os obstáculos e desafios encontrados no desenvolvimento do projeto. Pois, segundo Gisele, a conjugação de diferentes formas de alfabetização, inclusive tecnológica, foi o maior desafio do ensino naquele momento, principalmente no caso da turma de alfabetização de Jovens e Adultos, com diferentes faixas etárias e vivências.

Com todo esse mosaico reunido, era preciso ter um ou mais elementos de ligação desses pontos. E a partir dos conceitos de alfabetização propostos por Paulo Freire na EJA, o incentivo às narrativas discentes, também a obra de Conceição Evaristo, além do conceito de afetividade da autora Azoilda Loretto, a trajetória de Gisele somou-se a todos esses repertórios que perpassam as diferentes relações na escola pública cotidianamente.

Dentro desse grande painel de conhecimentos, Conceição Evaristo foi o grande disparador conceitual e de admiração, uma vez que os alunos se apropriaram das suas próprias “escrevivências”. “Gostaram tanto dos contos da Conceição, como da sua história de vida quando foi apresentada. Até que no fim escrevemos uma carta para ela, contando um pouco da nossa trajetória”, revela a professora Gisele, ansiosa pela resposta da autora. Estamos na torcida!

 

Alunos compartilham seus olhares

Para os alunos, os sentimentos acerca da mudança gerada através do projeto parecem ter sido o real prêmio nesse processo de aprendizagem, afirma dona Jacyra Maria da Silva, de 61 anos. “Eu não estudava, estava em casa e a minha vizinha, dona Geraldina, foi a causadora de tudo isso. Ela já estudava aqui, conhecia a professora e o projeto que estava acontecendo e graças a Deus ela me incentivou e muito, eu agradeço muito a ela e a Deus tudo que fez por mim. Eu também queria aprender a ler melhor e a escrever. Eu sabia alguma coisa, mas na escola mesmo não pude estudar muito por causa da minha mãe e do meu irmão, pois sempre ajudei em casa. Então, praticamente, não estudei nem na infância nem na juventude. A  escola para mim está sendo muito boa, muito mesmo, estou aprendendo a cada dia mais, aprendendo muitas coisas que eu não sabia direito, muitas coisas boas aqui na sala. Estou convivendo com os amigos e gosto muito das pessoas daqui, me fazem bem. Quando me sinto sozinha, eu pego meu caderno, fico no meu quarto e começo a estudar aquelas coisas todinhas. Tudo isso eu percebi no projeto, montei com muito carinho meu livro pessoal, sempre com capricho, colorido, e foi me dando vontade de escrever mais nele. Construí trabalhos que eu não imaginava ser capaz de realizar e vi que nossas histórias de vida aqui são valorizadas. Graças a Deus, é isso que eu tenho que falar da escola”, assegura a aluna.

Quem também está radiante é a aluna Izaêuda Paiva, de 49 anos, ao comentar o quanto é bom aprender. “Estou gostando, a Gisele é boa professora, tem paciência. Eu não sabia de nada, estou aprendendo o alfabeto todo, estou tendo aprendizado. Eu nem sabia falar direito, principalmente essa palavra: aprendizado. Estou aprendendo com a idade. Eu gostei de aprender a ler e escrever. A escola é boa, a professora, os outros professores e a dona Kátia é uma boa pessoa. Estudamos que temos ‛escrevivências’, que são as nossas vivências, eu nunca ia saber isso antes do projeto da escola. Eu consigo naquele tempo esquecer os problemas, tenho apoio como se fosse uma família e cada atividade do projeto fiz com organização e capricho. Às vezes parecia até que era criança de novo. A professora dizia sempre que éramos artistas, que podíamos escrever e termos nossas histórias”, exalta Izaêuda.

Ter a oportunidade de volta à sala de aula e aprender a reaprender acrescentou um novo sentido às vivências de Luiz Carlos Reis Nunes. “Está recente, mas eu falo uma coisa, eu estou me sentindo bem melhor, melhorou bastante. Acho que a mente está ficando até mais limpa. Eu andava nervoso e no trabalho estava me aborrecendo, agora eu estou ignorando tudo, me desliguei das pessoas que me aborreciam, porque agora eu voltei a estudar. Ir para a escola mudou a minha mente. Estou com a mente boa, me sentindo bem, estou feliz de estar vindo pra escola. Eu largo 5 horas, entende, lá para as 4 horas já vou me organizando e quando dá o horário monto na bicicleta e venho correndo, chego em casa alegre à beça. Até minha esposa comentou que estou até mais positivo, me sentindo bem e que eu estou diferente. Acho que mudou muita coisa eu ter vindo estudar, porque no meu tempo de garoto eu não quis nada com estudo, mas agora estou interessado, gostando e muito feliz de estar estudando. No dia que comecei, a turma estava envolvida com as atividades do projeto e o pouco que participei desde que comecei já me proporcionou tudo isso”, valoriza Luiz Carlos, de 57 anos.

Diferentes formas de alfabetização resultou em múltiplas histórias de sucesso e numa carta escrita pelos alunos recém-alfabetizados à autora Conceição Evaristo.


Por Antônia Lúcia
Escola Municipal Alcide de Gasperi
Rua Miraluz, 181 – Higienópolis – Rio de Janeiro/RJ
CEP: 21061-040
Tel.: (21) 3887-4506
E-mail: emagasperi@rioeduca.net
Professora idealizadora: Gisele Ferreira da Silva


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