Ao aprendermos, nossas conexões se modificam. Com o apoio da neurodidática, neurocientistas poderão ajudar professores e pedagogos a desenvolver novas estratégias de ensino e aprendizado

Com o retorno às aulas depois das férias, milhões de crianças e jovens voltam ao batente. Muitas coisas, e as mais variadas, são ensinadas e aprendidas – desde ler e escrever, passando pelas aulas de História, até a Matemática dos cálculos diferencial e integral. Mas a escola consegue, de fato, transmitir o que os estudantes precisam para um futuro de sucesso?

Enquanto filósofos, psicólogos, antropólogos e sociólogos discutem o assunto há décadas, as neurociências têm se mantido de fora das questões didáticas. Um paradoxo, considerando-se que, afinal, o aprendizado acontece na cabeça: todo o processo é acompanhado de alterações no cérebro. Portanto, cabe à neurobiologia fornecer a base científica sobre a qual se poderiam erigir teorias didáticas modernas.

Foi dessa idéia que partimos há alguns anos, ao fundar uma nova disciplina: a neurodidática. Ela procura configurar o aprendizado da melhor maneira que o cérebro é capaz de aprender. Com freqüência, porém, essa abordagem enfrenta resistência dos pedagogos mais voltados às ciências humanas. E, no entanto, a ninguém ocorreria encomendar a pintores, encanadores ou jardineiros a construção de uma casa – prescindindo do trabalho do engenheiro. De todo modo, o fato é que, à luz das novas descobertas neurocientíficas acerca do aprendizado, muitas das hipóteses das ciências educacionais têm se revelado demasiado simplistas.

É o caso, por exemplo, das teses de Jean Piaget. Segundo o suíço – um dos pais da psicologia do desenvolvimento, falecido em 1980 –, a evolução cognitiva se dá por estágios que se sucedem de forma sistemática. Determinadas capacidades e deficiências lógicas marcam cada uma dessas etapas, as quais fixam fronteiras etárias para o aprendizado. Num de seus experimentos mais famosos, Piaget verteu água de um copo largo em outro, mais delgado, diante dos olhos de crianças em idade pré-escolar. A maioria de seus voluntários insistiu que o copo delgado continha mais água – graças ao nível de água mais elevado.

Piaget atribuiu essa insistência ao fato de as crianças só serem capazes de considerar uma única dimensão, negligenciando largura e profundidade. Concluiu que, na chamada fase pré-operacional, que se estende até os 6 anos, as crianças não estariam em condições de, ao apreender o mundo, considerar e combinar, de forma sensata, várias informações ao mesmo tempo. Em razão dessa incapacidade para o raciocínio lógico, seria inútil tentar ensinar uma criança em idade pré-escolar a fazer contas.

Nesse meio-tempo, no entanto, tomou-se voz corrente que as crianças pequenas são, sim, capazes de efetuar semelhantes operações intelectuais, contanto que aprendam de modo apropriado à sua idade. Aos 3 anos, elas já têm senso para relações físicas fundamentais e podem definir velocidades associando corretamente caminho a percorrer e tempo. Do mesmo modo, compreendem instintivamente o princípio de Arquimedes, ou seja, o de que um copo só flutua se sua densidade for menor que a da água.

Até mesmo bebês possuem considerável saber básico. Aos 4 meses, distinguem entre quatro ou seis pontos desenhados numa lousa – o primeiro passo para fazer contas. Ainda engatinhando, revelam compreensão matemática quando ordenam seus bichos de pelúcia de acordo com a altura de cada um. Crianças buscam sempre estender essa compreensão intuitiva, mas de forma diferente dos adultos.

“Aprender fazendo” é o princípio que rege os primeiros anos de vida. De forma sistemática, concentrada e, em geral, com a inabalável coerência, os cientistas mirins efetuam experiências ou toda uma série de tentativas das quais extraem teorias que serão corroboradas ou revistas mediante novas tentativas. Depois de jogar para o alto pela centésima vez um tijolinho de Lego – e de vê-lo cair no chão de novo –,a criança sabe que a gravidade existe, embora desconheça o conceito. Estudos comportamentais demonstraram que os pequenos expandem seu saber com tanto maior velocidade quanto mais puderem experimentar por conta própria. Assim, se Piaget tivesse solicitado algumas vezes a seus voluntários que vertessem eles próprios a água de um copo no outro, é possível que a maioria tivesse chegado à conclusão correta.

Neurobiólogos descrevem o cérebro como um sistema dinâmico que, no nascimento, dispõe de um estoque básico de saber prévio e começa, de imediato, a dirigir perguntas ao exterior. Desde o primeiro choro, bebês ocupam-se de descobrir o que se passa em torno deles. Por muito tempo, deu-se como certo que a capacidade de desempenho do cérebro – e, portanto, também o potencial de aprendizado – era predeterminada pela genética, como a cor dos olhos ou dos cabelos. Experimentos com animais demonstraram, porém, que a hereditariedade define tão-somente o equipamento básico para a construção neuronal. O fluxo das informações provenientes dos sentidos e a interação dinâmica e constante com o meio determinarão, a seguir, como o cérebro irá se desenvolver, isto é, o que vamos aprender e que talentos desenvolveremos.

Logo ao nascer, todo ser humano possuiu centenas de bilhões de neurônios, um número que, aliás, sofre ainda pequena redução ao longo da vida. Nos dois primeiros anos, crescem, sobretudo, os apêndices mediante os quais cada célula nervosa envia sinais a milhares de outras. Pontos especiais de contato – as sinapses – transmitem as informações entre as diferentes células. Por intermédio de uma quantidade superior a centenas de trilhões dessas ligações sinápticas, os neurônios se reúnem em redes capazes de se comunicar entre si, mesmo a distâncias maiores.

De início, surgem sinapses em profusão, uniformemente distribuídas. Quando, porém, certos neurônios respondem a estímulos que freqüentemente se manifestam em conjunto, disparando com igual freqüência de forma sincronizada, as sinapses entre tais neurônios se fortalecem e perduram por bastante tempo.

Como um escultor que talha a pedra, dando forma à sua escultura, processos de aprendizado modelam o cérebro dotado de sinapses em excesso. Eles dissolvem conexões pouco utilizadas ou fortalecem as ativas e de uso freqüente. Desde o tatear inicial do bebê, passando pela fala, pelo conhecimento pormenorizado de cada pokémon, até os vocábulos em inglês – tudo que aprendemos altera nossa rede neuronal. Assim, o desenvolvimento das capacidades cognitivas e o do cérebro estão vinculados um ao outro de forma indissociável – e o mesmo se aplica à didática e às neurociências. Apenas em conjunto, elas podem desenvolver novas estratégias de aprendizado apropriadas às crianças, que permitam a educadores reconhecer melhor e estimular os talentos individuais de seus alunos. E os que sabem de que forma e segundo quais condições o cérebro se modifica durante o aprendizado, sem dúvida, poderão ensinar melhor.

Embora o aprendizado jamais tenha fim, as bases do saber futuro são lançadas em grande parte já na infância. A crença de que aquilo que não se aprende em criança tampouco se poderá aprender quando adulto tem fundamento neurobiológico. Afinal, quais neurônios vão se interconectar é algo que sobretudo os primeiros 15 anos de vida irão decidir. Por essa época, estará constituído o diagrama básico dos circuitos formados pelas células nervosas. O amadurecimento do cérebro estará, em grande medida, completo, e definidos estarão, ao menos em linhas gerais, os trilhos que nortearão o pensamento adulto. Depois disso, as redes neuronais ainda seguirão dispondo de certa plasticidade – até idade avançada, sinapses serão fortalecidas ou enfraquecidas por novos estímulos, experiências, pensamentos e ações, o que nos possibilita aprender durante toda a vida –, mas, passada a puberdade, o cérebro se deixa modelar com menos facilidade, e a formação de novas conexões torna-se mais rara. É por essa razão que nossa dificuldade em reter dados novos na memória é tão maior quanto mais tardia sua aquisição.

É DE PEQUENO QUE SE...

É essencial estimular sinapses tão cedo e de forma tão variada quanto possível nas crianças – por exemplo, com o auxílio de línguas estrangeiras. Assim, não seria insensato tocar para um bebê que ainda engatinha CDs com histórias em inglês. Ainda que ele mal consiga entender as palavras, a mera audição desenvolverá em diversas regiões do corpo os canais neuronais apropriados à aquisição posterior dessa língua. Uma delas, responsável pela compreensão lingüística, é a área de Wernicke, que diferencia sons humanos e classifica os diversos elementos de um idioma. Ao ouvir, o cérebro infantil está sempre à procura de padrões acústicos que chamem sua atenção. Quando os encontra, ele o armazena na área de Wernicke. Pouco a pouco, tem origem uma memória para os sons das palavras do ambiente lingüístico em questão. Uma criança que se familiarizou desde cedo com os sons de duas línguas irá dispor, mais tarde, de um estoque mais rico em padrões sonoros que outra criada em convívio exclusivo com a língua materna.

No tocante à fala, a região cerebral responsável por ela é principalmente a área de Broca, onde se desenvolve a memória para a pronúncia. A partir da imitação dos sons ouvidos, a criança aprende a ajustar suas próprias manifestações, a diferenciá-las e a classificá-las como componentes da língua. Graças às redes neuronais desenvolvidas em decorrência do contato com a segunda língua, a criança já se familiariza com suas particularidades sonoras. Quando, na escola, ela depara com as primeiras palavras em inglês, seu cérebro pode recorrer àquele circuito. Desse modo, grava novas palavras na memória com maior velocidade e tem também mais facilidade na produção da pronúncia correta.
 
Todo aquele que, desde pequeno, convive com duas línguas fixa a segunda em redes tão estáveis que continuará dominando-a ainda que tenha deixado de utilizá-la por décadas. Isso se aplica a outras áreas também, tais como a familiaridade com os números. Exercícios tão lúdicos quanto a justa divisão de um bolo entre amiguinhos nas brincadeiras cotidianas lançam as bases neuronais da compreensão matemática.
 
DESCOBERTAS NO PAÍS DOS NÚMEROS

O projeto que desenvolvemos no jardim-de-infância mostra a eficácia do aprendizado “multicanal”. Uma vez por semana, por uma hora, as crianças vivenciam o mundo abstrato e simbólico da Matemática, apresentado como um país atraente e diversificado. Na “Morada dos Números”, por exemplo, elas montam uma casa para cada número de 1 a 10 – cada um com seu número, suas figurinhas, bolinhas e tijolinhos, sempre em quantidade correspondente ao número em questão. Um deles é “Número do Dia”, e sobre seu reino contam-se histórias fantásticas: no reino do 1, por exemplo, só existe um exemplar de cada coisa, as pessoas têm um único olho e um só pé. No “Caminho dos Números”, as crianças conhecem cada número, para o qual há enigmas a resolver, versinhos rimados e danças. Em dez encontros, a maioria aprende brincando muitas das características dos números, enquanto os currículos das escolas reservam boa parte do primeiro ano escolar para esse mesmo propósito.

Neurocientistas explicam esse sucesso com base no fato de que a memória humana funciona por associações. A evocação de um único aspecto basta para trazer à consciência a totalidade da informação armazenada. Assim, quanto mais multifacetada for a transmissão da informação em sala de aula, melhor.

 

Obs.: Matéria extraída da Revista Viver – mente & cérebro.
(Edição n.º 157 – Ano XIV – Fevereiro/2006)
Colaboração: Gerhard Friedrich & Gerhard Preiss
Na próxima edição, daremos continuidade à matéria sobre Neurodidática.
Ilustração: Luiz Cláudio & Patricia Rocha

Embora o aprendizado
jamais tenha fim, as bases do saber são lançadas em
grande parte já
na infância