No chão da escola

Com uma narrativa envolvente e única, a escola se revela aos seus atores


Está quase na hora! Sei que, muito em breve, serei passarela para muitos atores mirins que por mim passarão com um uníssono objetivo: a instigante busca por conhecimentos diferentes dos que são aprendidos em outros chãos: o da rua, o de casa, o da pracinha, o do comércio local, o das casas de familiares e de vizinhos. Enfim, espaços por onde esses protagonistas circulam e onde aprendem diversas informações que lhes são também úteis no decorrer de sua caminhada enquanto cidadãos. 

Antes da chegada desses personagens tão aguardados por todos que fazem parte do universo escolar, entretanto, há toda uma preparação para recebê-los. Estes são alguns dos detalhes: 1) limpeza (Passam-me panos e até cera para que eu fique brilhante e cheiroso. E devo confessar que adoro esses mimos feitos pelos profissionais da limpeza! Ah, como é bom sentir a vassoura e o rodo massageando-me todo! Como valorizo o trabalho dessa equipe!); 2) organização das carteiras (Às vezes, acho que me arranham em demasia, mas, como ninguém me escuta, fica por isso mesmo…) e das mesas, que são instrumentos essenciais para a execução das tarefas propostas por um ator não menos primordial: o(a) professor(a). E lá vem ele(a), passos firmes, sincronizados, à espera de dar início a mais uma série de passadas que levarão seus discípulos aos crescimentos intelectual, cognitivo, socioemocional. 

É significativo sentir a desenvoltura desse(a) profissional que, por vezes, se emociona e também se aborrece com a atitude de certos atores que ainda não descobriram a importância de sobre mim estarem. Sim, é terrível narrar quantas vezes sou arranhado, maltratado, pisado com brutalidade por aqueles que ainda não perceberam que estão em um palco onde têm a chance de errar; visto que, em outros chãos, normalmente o erro implica demissão, punição, enfim, chateação. Ah! Que aflição! 

Confesso que me sinto deveras fundamental, uma vez que sobre mim passaram vultosas personagens. Senti sobre mim pisadas de futuros prefeitos, de secretárias de educação, de ministros, de médicos, de bombeiros, de policiais, de veterinários, de engenheiros, de comerciários, de servidores públicos, de advogados (a lista de profissões é praticamente infinita!). Percebo que isso me sensibiliza e que me traz imensurável orgulho. Afinal, estudantes de todas as áreas têm de frequentar uma escola e por mim desfilar (Quero enfatizar que devo empregar “têm DE” quando houver o intuito de marcar obrigatoriedade. Aprendi isso, certo dia, na aula de Português, em que o assunto era Semântica. Ou você pensa que fico à toa o dia inteiro? Estou sempre atento aos conteúdos ministrados pelo corpo docente!). Sei que você estranhou minha nota de tom pessoal feita há pouco, no entanto, saiba que presto bastante atenção às aulas e que, nesses anos em que sirvo de passarela a todos, também acumulo conhecimento (A prova disso é a correlação que acabei de fazer entre essa fala e o conto machadiano Um Apólogo, ao pensar que sou como a agulha, que abre caminho para a linha desfilar no corpo da baronesa em um baile. Aproveito para indicar essa leitura! Que tal caminhar até a biblioteca de sua escola e fazer o empréstimo do livro Para Gostar de Ler, Volume 9, Contos, Editora Ática – São Paulo, 1984, pág. 59). 

Às vezes, divirto-me com a angústia de alguns colegiais que, ao fazerem avaliações, pelas diversas batidas em mim feitas pelos tênis, sinalizam o nervosismo que estão sentindo. Ah, se eu pudesse ajudá-los!!! Também daria uma boa bronca nesses aprendizes, já que, por vezes, percebo que, no momento em que o(a) professor(a) estava explicando e com a turma construindo o conhecimento, aqueles nervosinhos simplesmente ignoravam a tudo e a todos, dando batidinhas com os pés ao lembrar de uma música de que tanto gostam (Isso é só um dos motivos que levam muitos a deixarem passar momentos, considerados por mim, imperdíveis! Conhecimento é tudo para mim, leitores!). Veja se o resultado disso será bom!? Não há como acertar mesmo qualquer questão sem a devida atenção! 

Não posso aqui deixar de relatar também os passos de outros que demonstram, pela segurança no andar, que dirigem com sabedoria e com firmeza a escola: o(a) diretor(a), figura que, ao caminhar em direção à sala de aula, transforma a postura de grande parte do corpo discente. Refiro-me à grande parte, pois sempre existem aqueles danadinhos que, mesmo sabendo da importância de ter uma postura de respeito na escola, teimam em fazer estripulias, que levam a repreensões necessárias para se manter o espaço escolar adequado à aprendizagem. 

Como me emociono à toa, caro(a) leitor(a)! Também o que não faltam são cenas dignas de Hollywood. Certo dia, caminhava sobre mim, com muita dificuldade de locomoção, uma linda menininha. Pelo tamanho de seu pequenino par de tênis, deveria ter, no máximo, sete anos. Apesar disso, seus passinhos me passavam uma vontade e um orgulho em poder estar pisando o chão da escola, já que, se não fosse o trabalho em conjunto das secretarias municipais de educação e de assistência social, essa artista mirim por mim não teria como circular. E captar a energia boa que dela emanava e a emoção de pisar-me pela primeira vez são cenas que muito me fazem ter orgulho de ser um chão escolar (Minhas lágrimas escorrem pelos espaços entre os pisos, mas, como são invisíveis a todos, ficam imperceptíveis.). 

Não é essa a única cena digna de relato, já que, há poucos dias, também recebi um aluno com necessidades especiais. A princípio, estranhei o fato de não sentir seus passos, apenas pneus de uma cadeira de rodas, foi o que depois inferi (sinônimo de concluir. Já lhe disse, caro(a) leitor(a), que fico atento às aulas, principalmente de Português, ministradas por uma professora cujos sapatos são belíssimos, embora sejam enormes! Parece calçar 40!!! Porém, é de uma simplicidade e de um carinho com seus aprendizes cativante. Acho que estou apaixonado… Sua alegria é contagiante! Ela, mesmo cedinho, no primeiro tempo de aula, que começa às 7h 30min, está sempre com um sorriso no rosto! Diz aos alunos que diariamente devemos agradecer por mais um dia! Que Deus é maravilhoso! Concordo com ela!). Não é muita emoção para um já velho e gasto chão, minha gente? Não há palavras que consigam dar conta do que senti e do orgulho que tive ao saber da chegada de estudantes que mostram ser a escola um espaço inclusivo, visto que esses aprendizes têm o direito, como qualquer outra criança ou jovem, de circular e de frequentá-la. Sem essa cadeira de rodas e a acessibilidade do espaço escolar, contudo, ficavam impossibilitados de por mim passar (Aproveito para fazer um protesto, por saber que não é toda escola que oferta acessibilidade! Se eu pudesse, faria certos políticos escorregarem para eu conseguir falar bem pertinho do ouvido deles: – Cadê a empatia? Cuidem destes aprendizes!). Acho que eu perderia a linha com alguns políticos (Ah, mas deixe isso para lá! Afinal, a maioria cumpre seu papel! Isso me deixa esperançoso.)! E o que importa é saber que diariamente aquelas rodinhas circularão freneticamente a caminho da sala de aula, também com uma rampa de acesso (que é uma prima minha, que veio especialmente para fazer junto a mim um chão que sirva a todos e onde não haja exclusão), preparada para a livre circulação desses pupilos! 

Como resolvi me abrir e falar tudo que percebo, aproveito para contar que, ao final de um turno, fico muito deprimido porque sobre mim jazem pontas de lápis, papéis de bala, bolinhas de papel (Coitadas das árvores! Ouço professores que dizem: “Meninos, não arranquem folhas à toa, usem o corretivo!”). Aquela professora de Português é a que mais reclama! Ela diz que sente até dor ao vir um estudante arrancando uma folha do caderno só por um erro cometido em uma palavra (Ai, estou perdidamente apaixonado por essa educadora!). Infelizmente, poucos estudantes dão ouvidos àqueles professores e preferem fazer de mim um mar de lixo! Isso tudo acontece, bem sei, apesar das constantes conversas que acontecem logo no início do ano letivo, momento em que o regimento escolar é passado a todos pela equipe diretiva da escola. Só que há aprendizes que parecem não ter ouvido nada do que foi dito, ou apenas não veem problema algum em me sujar. E ainda querem se justificar! 

Ainda bem que não é só de tristeza que me alimento, visto que todos os profissionais que hoje são importantes nomes em nosso município ou em outros (muitos se mudam e deixam meu chão triste) por mim desfilaram, o que me deixa honrado. Não sei declarar o exato quantitativo deles, todavia minha afinada percepção já demonstrava que aqueles passinhos de criança se transformariam em pernadas indispensáveis para o futuro e para o desenvolvimento de nossa sociedade (Estou sentindo as lágrimas escorrerem… É melhor parar de pensar nisso, pois aprendi, na aula de Ciências, que devemos controlar as emoções e que, quanto maior a idade, maiores as chances de termos um enfarte!). Prefiro não citar nomes desses educandos também especiais para não deixar ninguém de fora da enorme lista. Mas basta você, caro(a) leitor(a), pensar que todos, independentemente da função que exerçam ou que já tenham exercido, fizeram jus aos assíduos passos que deram no decorrer de sua caminhada diária por mim, velho e gasto chão da escola. 

Já está na hora de eu terminar minhas reflexões, uma vez que tenho de me preparar para recepcionar mais um imenso grupo de estudantes que chegarão ansiosos e curiosos para me explorar. Falo isso, pois, depois que me conhecerão como um todo, muitos até por mim rolarão (brincadeiras de que muito gosto, pois é um momento em que mais próximo a eles fico e que posso abraçá-los e senti-los mais perto de mim!). Lembrar-se-ão (é mais um uso que devo àquela professora de Português…. Afinal, verbos no futuro do presente e do pretérito exigem a mesóclise do pronome oblíquo átono!) dos mágicos tempos de escola e de tudo por que passaram ali quando afastados dela estiverem por terem concluído seus estudos … 

Caro(a) leitor(a), diante desse emocionante texto feito por mim, um tão ignorado chão de escola, que contou com a escriba profª. Dra. Fernanda Lessa, só me resta declarar o seguinte: sou um chão escolar e orgulho-me muito de sê-lo. Sim é essa a minha simples e apaixonante conclusão! E, como não poderia deixar de agradecer, sou grato a todos que, de alguma forma, zelaram pela minha manutenção e pela limpeza de meu corpo tão gasto pelas pisadelas de muitos que de mim nem se lembrarão, mas que terão belíssimas histórias para relatar desses saudosos tempos de escola! 

Peço apenas que, a partir desta leitura, todos que por mim circularem retirem um tempo, nem que seja um segundo, para me contemplar como parte integrante do incrível, singular e apaixonante universo escolar! 

Termino meu relato parabenizando todos os Educadores que, no último dia 15 de outubro, são alvo de comemoração pelo fato de a sociedade reconhecer a indiscutível função que cada professor tem para nosso país! 

Por tudo isso, quero deixar explícita minha GRATIDÃO à classe de professores! Sem vocês nada é possível! Nem mesmo a leitura deste texto! 


Fernanda Lessa é Doutora em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestra em Letras pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro de Especialização em Língua Portuguesa / Linguística do texto pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Bacharel em Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Licenciada em Pedagogia pelo Centro Universitário FACVEST-UNIFACVEST (2020). Atua como Professor I – Língua Portuguesa e como Coordenadora do Ensino Fundamental (CEF). 


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