Me escuta, pô!

A proposta é estimular a reflexão sobre o papel de cada um e a importância para a sociedade


Como recomenda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a escola deve empreender, em seu cotidiano, uma reflexão acerca das múltiplas cidadanias e identidades, necessárias para a construção de uma sociedade democrática. No Thomas Jefferson, em Realengo, a professora Jéssica Fernandes desenvolveu, com alunos do 4º ano do Ensino Fundamental,     o projeto Me escuta, pô!, com a proposta de estimular uma reflexão sobre o papel de cada sujeito e sua importância para a sociedade, a fim de elevar a autoestima do aluno que se vê e se sente marginalizado por conta de suas características físicas e de sua realidade social.

De acordo com a professora, o projeto, colocado em prática nos últimos quatro meses do ano, foi pensado para atingir as diversas áreas do conhecimento, partindo de uma perspectiva transdisciplinar. Jéssica destaca que, antes mesmo do projeto ser pensado, já havia um trabalho sendo feito com a turma em relação à construção da identidade. “O Me escuta, pô! veio complementar uma abordagem que respeite a subjetividade de cada aluno e foi idealizado após sermos presenteados pela Appai com ingressos e transporte para que pudéssemos levar os alunos a um teatro, em Bangu, para assistir a peça ‘A Bela Adormecida’, com o intuito de mostrar a eles diferentes possibilidades de se expressar e também ressaltar a positividade nas características de sujeitos negros, por meio do conceito da representatividade”, enfatiza.

Além da troca de saberes, os alunos participaram ativamente da produção textual e da contação de histórias

O espetáculo visto pelos alunos é uma releitura da obra escrita em 1634 pelo francês Charles Perrault. Séculos depois, em 1959, seria alavancada à fama mundial com uma adaptação animada feita pelos estúdios Disney. Nessa adaptação o roteiro é da escritora carioca Janine Rodrigues, também uma mulher negra, autora de seis livros de literatura infantojuvenil focados em diversidade. Com direção de Alexandre Lino, a peça subverte algumas noções presentes na produção clássica, em que cores e tons mais escuros são sempre associados a algo maligno e negativo. A atriz e bailarina Silvia Patrícia é a protagonista do espetáculo, que estabelece um reencontro com as culturas populares e erudita, além de exaltar as nossas raízes e a diversidade para as novas gerações. A beleza, a inteligência e o talento da menina/mulher subvertem o imaginário que idealiza princesas como pessoas brancas, louras e de olhos claros.

A professora relembra que muitos alunos ficaram encantados com a história e, a partir dali, ela vislumbrou a possibilidade de desenvolver diferentes atividades que estimulassem a formação da identidade e a melhora da autoestima da turma. “Este projeto se torna relevante mediante o contexto no qual os alunos estão inseridos. Muitos ainda têm dificuldade em se assumir como sujeito negro, numa sociedade em que a estética branca é quem define o belo”, complementa.

No dia da culminância do projeto, os alunos foram surpreendidos com a visita de Silvia Patrícia à escola. Numa mistura de entusiasmo e encantamento, as crianças a abraçaram e demonstraram muito carinho pela atriz, numa clara demonstração da empatia criada desde o dia da encenação da peça. “É muito gratificante saber que sou referência para essas crianças, que veem em mim uma possibilidade de ascensão. Eu vejo brilho nos olhos delas, eu sinto retorno. A mensagem da peça foi mostrar que todos somos belos, que todos temos uma história e que podemos contá-la”.

As obras de três autores negros, Otávio Júnior, Elaine Marcelina e Carlos Carvalho, serviram como eixo, a fim de que os alunos pudessem refletir sobre felicidade, saberes e seu lugar de valor na sociedade

Ao longo do projeto, os alunos trabalharam com produção textual e contação de histórias baseadas em três autores negros: “Da minha janela”, de Otávio Júnior, obra que retrata a perspectiva de um personagem que narra cada coisa, pessoa e animal que vê da sua janela, em uma favela do Rio de Janeiro. Dela, ele vê cores, traços, gestos, objetos e bichos cujas vidas podem ser parecidas ou diferentes da do leitor, mas que têm algo a ensinar. No segundo livro, “As coisas simples da vida”, a autora Elaine Marcelina fala de sentimento entre mãe e filha e faz a criança leitora refletir sobre tantas outras coisas simples que nos trazem felicidade. Já o terceiro livro trabalhado com os alunos foi “Xavier”, de Carlos Carvalho. Segundo o autor, a obra busca ser um instrumento que faz o negro sair do “lugar comum” na sociedade brasileira, considerando a importância para a identificação de crianças e jovens com personagens cujo tom de pele é diferente da maioria dos personagens das histórias infantis.

A professora Jéssica contou ainda com a participação de vários colaboradores. Um deles é o próprio Carlos Carvalho, que, além de escritor, é também professor e músico. Ele realizou uma oficina de percussão, cujo objetivo foi estimular as crianças a perceber a música como mais uma possibilidade de expressão. Outro importante colaborador foi o professor e escritor Philippe Valentim, que orientou uma oficina com o propósito de mostrar a escrita como meio de “libertação”, no sentido de propiciar a autoria de textos de diversos gêneros. “A proposta foi mostrar que a literatura está presente nas nossas interações cotidianas, com o próprio território e com as nossas afetividades. Propusemos um exercício de minicontos a partir de uma tirinha, para que eles trouxessem um pouco da construção textual, fortalecendo a ideia de que a literatura pertence a todos nós, que ela está presente no dia a dia. É muito importante escrever. Falo como autor, porque é uma forma de se representar. A arte tem essa capacidade de transmutar a nossa existência”.

Já a professora e escritora Maria Carolina Azevedo aproveitou a abordagem da peça “A Bela Adormecida” para contar a história de personagens da realeza africana que foram escravizadas: “Trabalhei com as crianças a ancestralidade, um outro lado da vinda de negros escravizados para o Brasil, buscando restaurar suas identidades, como pessoas que tinham suas histórias antes de serem tornadas cativas. Apresentei às crianças algumas rainhas e reis negros e fizemos um trabalho de tentar pensar que foram essas as primeiras pessoas que formaram a família delas. Já que não temos histórias concretas, pelo menos trabalhamos a imaginação de uma forma afirmativa”. A empreendedora Lúcia do Espírito Santo fechou as parcerias com uma oficina de produção de faixas e turbantes, cujo objetivo foi demonstrar a possibilidade de se expressar através da vestimenta.

Na culminância do projeto, os alunos narraram histórias, declamaram poesias, desfilaram com faixas e turbantes que eles confeccionaram e fizeram apresentações de dança e percussão. A aluna Yasmim Souza foi a cerimonialista do evento: “Estou muito feliz de ter participado desse projeto. Agora sei que todos nós podemos ser o que quisermos. Só precisamos ir atrás dos nossos sonhos”, declarou. Seus colegas de turma, Nathany Martins Rodrigues e Vitor Medeiros, também estavam entusiasmados com o que aprenderam. “Eu escrevi uma poesia sobre nossos ancestrais e fiz três turbantes em tecidos para mim e meu irmão”, disse Nathany, enquanto Vitor completou: “Aprendi a ser percussionista e a dar valor aos nossos ancestrais africanos”.

Para a diretora do Ciep, Rejane Matos, o envolvimento dos alunos foi um aspecto importante no projeto. “É muito bom ver a escola em movimento, trabalhando temas tão atuais. Isso gera um comportamento diferenciado e propicia a abordagem de questões ligadas ao preconceito e ao bullying, por exemplo. Ao assimilar o conteúdo trabalhado, o aluno o propaga não só no ambiente escolar, como também na comunidade em que vive e no núcleo familiar. Esses valores vão repercutindo e ficamos muito felizes por isso”.

A coordenadora pedagógica Laura Varanis acompanhou todas as etapas do projeto e faz uma avaliação: “É muito importante enfocar a influência dos nossos ancestrais africanos e estimular a valorização dos alunos, para que se reconheçam como integrantes de uma sociedade em que eles ainda não se enxergam como membros ativos. Queremos que nossas crianças possam sair daqui capazes e cientes de que podem mudar essa sociedade”.

Na foto ao lado, da esquerda para a direita, a atriz Silvia Patrícia, a professora Jéssica Fernandes (responsável pelo projeto), além dos escritores Maria Carolina Azevedo e Philippe Valentim

 


Por Tony Carvalho
Ciep Thomas Jefferson
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Fotos: Tony Carvalho


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