Edição 39 - Aula-Passeio Revela o Rio de Janeiro


Experiência educacional inédita no Brasil propõe revolução no modelo tradicional de aprendizagem – na Escola Lumiar, alunos têm liberdade para decidir o que e quando estudar.

Desde fevereiro de 2003, São Paulo acolhe uma experiência inédita em educação no Brasil. Num casarão antigo próximo à Avenida Paulista, 24 crianças de 2 a 6 anos ditam suas próprias regras de convivência e participam de todas as decisões que envolvem a gestão da escola. Na Lumiar, a opinião dos alunos tem o mesmo peso do parecer de pais ou funcionários.

As crianças são co-responsáveis pelo próprio processo de aprendizagem. Isso significa que são elas que estabelecem o que têm interesse em aprender. Não há lousa, carteiras nem um plano de aula ou currículo predeterminado a ser seguido. Também não há tarefas para casa, provas ou exames, tampouco separação por série, sexo ou faixa etária: os alunos se reúnem, sozinhos, por afinidades afetivas ou de conhecimentos. As aulas não são compulsórias – aliás, elas sequer existem dentro do modelo tradicional de escola que prega a divisão em disciplinas básicas, como Português, Matemática ou Geografia.

Os professores da Lumiar também são bem diferentes dos das outras escolas. Lá, eles não são, necessariamente, pedagogos, mas sim profissionais de todos os tipos. Os únicos pressupostos para que participem da proposta da escola é que sejam especialistas em alguma área de conhecimento e que se mostrem apaixonados pelo que fazem.

Por trás dessa iniciativa inovadora está o empresário Ricardo Semler, que, na década de 80, revolucionou sua empresa, a Semco, com um processo de gestão descentralizado. A experiência rendeu-lhe o livro Virando a Própria Mesa (Rocco, 232 págs.), que vendeu mais de 1 milhão de exemplares e, segundo o autor, já foi traduzido para 28 línguas. Na época, Semler percebeu que havia uma resistência natural dos funcionários em aceitar as mudanças propostas. “O que fizemos foi contra a natureza do condicionamento que aquelas pessoas já traziam”, explica o empresário.

Os funcionários da Semco ainda hoje se beneficiam dessas transformações: o horário e o local de trabalho foram abolidos, as pessoas entram e saem quando querem e escolhem um de cada quatro lugares para trabalhar durante o dia. Ninguém tem mesa fixa. Para chegar a um posto de liderança, o funcionário precisa ser entrevistado e aprovado pelos futuros subordinados. A experiência, nada fácil, não termina na promoção: a cada seis meses, todos os líderes são avaliados, anonimamente, para garantir, ou não, a continuidade no cargo.

“Quando começamos, os empresários diziam que era loucura, que quebraríamos em breve. Tínhamos 200 funcionários na época, hoje são 3 mil”, exulta Semler, que conseguiu levar a cabo metade de suas idéias sobre gestão democrática. Com a experiência da Semco, ele viu que os entraves começavam na formação das pessoas. “Percebemos que o condicionamento da escola é um grande vilão.” Daí para a criação da Lumiar foi um processo natural, mas que levou anos de aprimoramento e estudo, além da criação da Fundação Semco e do Instituto Lumiar, do qual a escola faz parte.

A socióloga Helena Singer, diretora da Fundação Semco, se viu participando do embrião da escola sem perceber. Em 1995, sua tese de mestrado em Sociologia da Educação abordou a questão das chamadas “escolas democráticas” ou “libertárias”. Da escola Yásnaia-Poliana, criada em 1857 pelo escritor russo Leon Tolstoi (autor dos clássicos Guerra e Paz e Anna Karenina), à experiência mais conhecida de resistência, a Summerhill, Helena estudou cada uma das 95 iniciativas libertárias que conseguiu reunir no livro República de Crianças (Hucitec, 188 págs.). Hoje, ela acredita que existam mais de mil escolas assim, espalhadas em todo o mundo.

Nascidas na Europa, na segunda metade do século XIX, dentro do movimento Escola Nova – crítica ao ensino tradicional e ao “adultismo” com que eram tratadas as crianças –, essas escolas alternativas se espalharam pelo mundo com concepções pedagógicas muito diversas. Foi graças a essa origem comum que surgiram dezenas de experiências inovadoras, como o trabalho da italiana Maria Montessori (1870-1952) de estímulo ao desempenho ativo do aluno; do alemão Rudolf Steiner (1861-1925), mentor da filosofia antroposófica de ensino, cujas escolas são comumente conhecidas por Waldorf; além do Lar das Crianças, do médico polonês Janusz Korczak (1878-1942).

Pioneiras –Gradativamente, as escolas democráticas foram se distanciando do movimento que as precedeu. O que passou a diferenciá-las das demais experiências alternativas de educação foram as aulas opcionais e a presença de assembléias escolares, nas quais todos os membros da instituição tomam decisões referentes ao cotidiano da entidade. Além da Summerhill, as iniciativas mais conhecidas de escolas democráticas são a Sudbury Valley School, nos Estados Unidos, e a Escola da Ponte, em Portugal.

Apesar de ter recebido o movimento da Escola Nova com 80 anos de atraso, o Brasil também deu sua contribuição ao pensamento alternativo que une as escolas democráticas. Helena Singer refere-se ao educador pernambucano Paulo Freire (1921-1997), carinhosamente, como uma espécie de herói dessas experiências libertárias em educação. “Paulo Freire dizia que todo conhecimento é construído em conjunto”, lembra Helena.

Paulo Roberto Padilha, diretor pedagógico do Instituto Paulo Freire, acrescenta que há tempos o Brasil vem acumulando experiências democráticas, sobretudo no âmbito da escola pública popular, que questiona o modelo da escola tradicional, rígida e disciplinadora. “A escola pública popular existe desde os anos 60. Já àquela época, Paulo Freire buscava mudar esse caráter da escola conservadora, aquela que fecha todo mundo entre quatro paredes e aposta que o aluno não sabe nada”, explica Padilha. Segundo ele, vários municípios brasileiros têm experimentado mudanças, “não no sentido de abolir normas e regras de convivência, mas apostando numa escola mais feliz, na qual o aluno participe junto com o professor e todo mundo aprenda junto”.

No entanto, mesmo reconhecendo algumas características em comum com as escolas democráticas, Semler e Helena fazem questão de separar a Lumiar do que se fez até então. “Precisaríamos de três anos de estudo, visitas a duas centenas de escolas, institutos e fundações, aconselhamento com Howard Gardner, Seymour Pappert, Marie-Claire Franck, infindáveis debates com pais, psicólogos, sociólogos e educadores para recriar uma Summerhill atrasada e tupiniquim”, antecipa-se o empresário.

A aversão à comparação com a escola inglesa se explica. “Summerhill é uma ilha que parte do pressuposto de que os pais atrapalham. Os alunos vivem em regime de internato e as aulas são divididas por séries e disciplinas”, aponta Helena. A socióloga também se empenha em diferir a Lumiar da experiência também alternativa das escolas Waldorf, que existem no Brasil desde 1954. “Somos o mais diferente possível da pedagogia Waldorf. A antroposofia envolve uma concepção filosófica completa, que estabelece muitas restrições: os alunos têm limitações para assistir TV ou jogar futebol, por exemplo. As classes são seriadas e as aulas de artes são obrigatórias”, observa Helena.

A própria Federação das Escolas Waldorf no Brasil rechaça a comparação com as práticas da Lumiar. “Aqui não é o aluno quem nos diz o que fazer”, responde Shigueyo Mizoguchi, secretária executiva da Federação. Ela explica que a pedagogia Waldorf pode até ser considerada “alternativa” quando se usa como referência o modelo tradicional de escola. Mas que não se confunda isso com o que ela chama de “liberdade excessiva”. “Somos até muito rígidos se comparados às outras pedagogias. Não alfabetizamos as crianças antes da troca dos dentes de leite”, exemplifica. Shigueyo questiona a aparente liberalidade que existe por trás de muitas experiências inovadoras de educação. E critica: “O que estamos vendo nessas linhas alternativas é o adulto se redimindo de certas responsabilidades.”

A psicóloga Rosely Sayão também faz restrições ao excesso de liberdade nas escolas: “Se a criança e o adolescente pudessem se auto-regular, não haveria função nenhuma no papel do adulto”. Ela evita fazer críticas diretas à Lumiar antes de conhecer a escola pessoalmente, mas lembra que as crianças não saberiam, sozinhas, conviver democraticamente porque “têm uma função primordial que é pensar em si”. “A criança vai aprendendo com os limites impostos. Não é natural que ela conheça esses limites e, até conseguir fazer isso, alguém precisa fazê-lo”, completa Rosely.

Semler contesta as comparações “simplistas e mal-pensadas” feitas por quem não conhece a escola. “As pessoas imaginam crianças perdidas entre dezenas de adultos, raramente indo a uma atividade ou ‘aula’, um woodstock tardio de boas intenções, com paz e amor e muita ignorância”, ironiza ele.

Não é bagunça –Paulo Roberto Padilha, do Instituto Paulo Freire, também acha difícil fazer julgamentos sem acompanhar a experiência de perto. “Seria uma análise rasa, que poderia soar preconceituosa. Pode sempre haver o risco do excesso de liberdade, se não houver uma organização”, pondera. Padilha explica que o processo democrático numa escola não é sinônimo de ausência de regras ou de disciplina. “Substituir o modelo autocrático e hierarquizado e propor uma escola democrática não é deixar de ter princípios de convivência. Quando se constrói junto as regras de convivência na educação, você faz com que o jovem ou a criança participe das decisões sobre o que vai ser norma ou lei na escola. Não é para virar bagunça”, defende. E completa: “A instituição fechada, que proíbe tudo e atribui unicamente ao professor o papel de definir normas, é uma coisa ultrapassada.”

Helena Singer garante que há limites na Lumiar, mas que eles não são normativos. “Os limites existem o tempo todo: há limites físicos, de segurança, de convivência e de respeito. As crianças não gritam porque aqui ninguém grita com elas”, exemplifica. Ela chama atenção também para os limites da Constituição, garantindo que “tudo que é proibido por lei é proibido na escola”.

Além desses limites, os alunos da Lumiar (atualmente, são crianças, mas a escola pretende aumentar a faixa etária aos poucos) se reúnem em pequenas assembléias para criar as “leis” da escola. Foi dessa forma, por exemplo, que chegaram à conclusão de que é necessário perguntar se há alguém usando um brinquedo antes de pegá-lo para brincar. Algumas das primeiras regras da escola podem ser lidas num cartaz que os professores fizeram com as observações das próprias crianças.

Mas não é apenas no quesito limites que a Lumiar preocupa muitos educadores. Helena não esconde as críticas que a escola recebe. “Muitos pedagogos acham um absurdo outros profissionais participarem das oficinas na escola. Aliás, não é coincidência o fato de quase não haver nenhum pedagogo entre nós: eles são os mais críticos, acham o conhecimento técnico imprescindível.” A socióloga explica que a proposta da Lumiar coloca em xeque a maneira como se dá o aprendizado. “Para transmitir conhecimento não é necessário ter didática, é preciso estar apaixonado pelo que se faz”, acredita.

Aliás, a proposta é que a paixão permeie todas as práticas na Lumiar. Vai desde a contratação de educadores e mestres até o estímulo ao saber. “Somos contra forçar a criança a ir para a escola na marra, às 7h, a se sentar por horas envolvida em assuntos que não lhe interessem. Somos a favor de crianças livres, que sejam incentivadas a procurar o seu mais alto potencial, seja acadêmico, artístico ou de foro íntimo. Como dizia Freud, amar e trabalhar são as únicas coisas que movem as pessoas e queremos que as crianças da Lumiar sejam capazes de fazer essas duas dificílimas coisas”, espera Ricardo Semler.

Com esse intuito, as “aulas” na Lumiar fazem parte de um conceito maior, o Mosaico. A idéia é redesenhar a relação currículo-conteúdo e transformá-la em algo mais atraente. O Instituto Lumiar vai se encarregar de criar programas de aulas que despertem mais o interesse dos alunos. Um exemplo é a aula de 60 dias sobre motocicleta, que deverá incorporar noções de Geometria (como desenhar as rodas da moto), Física (o que acontece quando o veículo bate), Biologia (as conseqüências da colisão no piloto), Política (protestos de motoqueiros à Guerra do Vietnã), entre outros. Semler acredita que, dessa forma, o “ônus de interessar passa à escola” e o aluno fica livre para ir à “aula” ou não. “Quem imagina um monte de crianças desinteressadas e jogando futebol por um ano está desacostumado a ver crianças livres e sadias”, adianta-se.

O próprio empresário admite tratar-se de um projeto “muito ambicioso”, que deverá concluir sua primeira fase nos próximos dez ou 12 anos. Helena afirma que todas essas inovações estão dentro do que prevê a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), de 1996. “A escola tradicional se esgotou. A maior prova disso é a indisciplina, que, segundo pesquisa da Unesco, é apontada como o maior problema educacional para 85% alunos e professores. E indisciplina nada mais é do que a resistência dos alunos a esse modelo falido de educação”, condena Helena.

A crença numa escola alternativa existe, de fato. Mas vale ressaltar que as resistências à concepção educacional proposta pela Lumiar não se limitam a pedagogos e educadores externos à escola. Pais de alunos ainda têm dúvidas. Helena confirma isso recordando uma cena do início do ano: “No primeiro dia de aula, as mães estavam muito apreensivas, preocupadas em saber se os filhos tinham comido, porque em casa elas diziam que eles davam muito trabalho para se alimentar. Vi algumas mães com a colher na mão, correndo atrás da criança, dentro da escola, para garantir que elas comessem.”

Hoje, a socióloga explica que todos os alunos que almoçam na escola se alimentam corretamente, sem dar dor de cabeça. “Colocamos as travessas na frente deles, eles se servem do que querem e depois levam o prato na cozinha. Comem sozinhos, sem ninguém forçar ou fazer ameaças.” A cozinheira da Lumiar, Elena Bispo dos Santos, concorda e ainda acrescenta: “Eles comem de tudo, não têm frescuras. Faço arroz, feijão, frango à milanesa, torta de atum, carne moída com batata, salada. Mesmo os que traziam comida de casa passaram a comer na escola.”

Resta saber se a iniciativa da Lumiar não corre o risco de ficar marginalizada, como todas as experiências libertadoras que a antecederam. Semler espera que a estrutura do Instituto Lumiar ajude a escola a difundir suas políticas e ações. Mas mesmo que essa proposta não possa ser aplicada à educação em massa, sua existência mostra que é possível pensar novos caminhos para a crise no ensino. Para o empresário, esse já é um saldo bastante positivo: “Os alunos que vivem de saco cheio [da escola] estão com toda a razão.”

Colaboração: Carolina Costa
Obs.: Matéria cedida pela Revista Educação
(Edição n.º 72 - abril/2003)